Cultura e expressão. A construção da sensibilidade em quem educamos

Na tarefa de educar Meninos e Meninas da Primeira Infância, os processos de formação permanente e o trabalho reflexivo com os outros são fundamentais. Neste texto analiso a construção da sensibilidade em quem educa/educamos, para desenvolver uma escuta e observação próxima e atenta do que as crianças fazem e dizem; tendo como premissa uma “orelha verde”, possibilitando cenários e ambientes lúdicos poderosos e desafiadores.

Reflexões sobre a tarefa e o campo educativo com outros/outras
A ideia que me convoca é refletir sobre a tarefa e o campo educativo com os/as outros/outras, partilhar sentimentos e pensamentos que tenho recolhido nestes 25 anos de exercício profissional.

Eu me posiciono a partir do papel de Psicóloga dos Centros Educacionais da Primeira Infância, como Professora de Educadores, e da minha essência permanente de arte educadora; área que tenho cultivado desde a graduação, que me permitiu observar e ouvir a realidade por ângulos mais artísticos, de “ouvido verde”, conforme nos fala Gianni Rodari. E também diria olho, paladar, tato, corpo verde.

“…ouço a voz da árvore, da pedra no chão, do riacho, do pássaro, da nuvem no céu.” Rodari, G. do conto “Um homem maduro de orelha verde”.

Escrever este artigo me faz pensar, colocando no centro o tema da construção da sensibilidade vinculada à tarefa educativa e de cuidado com crianças da Primeira Infância, e mais especificamente aquela que dá origem à construção de cenários e espaços lúdicos, a partir de um sentido da estética dos pequenos.

…e a ​​primeira pergunta que me faço é: não somos nós que educamos seres sensíveis? De que tipo de sensibilidade estamos falando? De que tipo de construção estamos falando e como ela é construída?

Muitas vezes durante os processos formativos, e principalmente nas instâncias de oficinas, que poderiam ser definidas como “experimentais”, vários dispositivos são desenvolvidos, onde se observa que algo mais é gerado, um movimento particular de afetividade. Há uma conjunção entre sentir, experimentar e refletir, possibilitada pelo material exposto, pela consigna que se estabelece e pela escuta e acompanhamento dos/das professores/as ao propor uma proposta.

O espaço para dialogar sobre a experiência, estabelecendo linhas de conexão com a tarefa educativa, são fundamentais; esse é o cerne da nossa tarefa.

A Superação do ajuste
Ao me distanciar e avaliar os processos e a própria evolução das instâncias de formação dos/das educadores/as, pude ver como essas “oficinas”, e estar exposto à brincadeira… aos materiais plásticos, à narração de uma história sob tecidos, ao uso da materialidade da luz para desenhar um cenário lúdico, entre outras variadas possibilidades que se instalam, possibilita um enriquecimento paralelo no que é posteriormente oferecido às crianças nas propostas lúdicas nas salas. Eu costumo chamar de “superação do ajuste”, e acrescento… “com todo o respeito que o ajuste merece”.

Enquanto o educador/a brinca, experimenta, toma conhecimento dos materiais, amplia-se a abertura para pensar a sala com outros horizontes, olhando para outra potência lúdica e mobilidade expressiva. Esta abertura deve ser acompanhada por teóricos contemporâneos e “clássicos” de peso, como Winnicott, Bruner, Javier Abad, Huizinga, Hoyuelos, Malaguzzi, para citar alguns, entre muitos outros.

Menciono o peso teórico, porque considero que essa sensibilidade, aquela que o/a educador/a tem que carregar para a sua tarefa, deve ser nutrida por essa materialidade teórica, tanto quanto a plástica, e a reflexiva. Caso contrário, é gerado em um vácuo, que não responde às exigências que a tarefa envolve, e que o próprio processo “sensível” exige, pois os materiais teóricos precisam passar pelo corpo e pela alma.

Se você souber observar…
(…) se souber observar, muda a atitude do educador, torna-se humilde, aberto à surpresa, menos diretivo e mais atento ao que a criança oferece, mais respeitador da natureza humana, capacitando desde os primeiros anos de vida para ser a arquiteta de sua própria existência, mais do que você pode acreditar. (Abad, J. 2011:111)

Segundo Javier Abad, existe um jogo que pertence ao/à educador/a, na tarefa de projetar e criar cenários lúdicos para meninos e meninas. Inicialmente, a magia de criar, de introduzir materiais, cores, formas, e instalá-los, pertence a quem educamos; essa é a nossa alegria, prazer e responsabilidade.

O que acontece quando sentimos que não temos essa “mágica”, criatividade ou capacidade lúdica?

Há outro elemento anterior ou simultâneo à capacidade lúdica, e tem a ver com a sensibilidade particular necessária que nos exige colocar-se no lugar do menino/menina para observar e ouvir o que eles/elas dizem e fazem.

Loris Malaguzzi nos orienta nessas ideias, a partir da pedagogia da escuta, promovendo uma escola onde as relações entre crianças e adultos, educadores/as e família, sejam determinantes para alcançar a qualidade educacional.

David Altimir, retoma as contribuições malaguzianas e fala de 4 instâncias, ou processos envolvidos na escuta pedagógica: escuta, observação, documentação, interpretação.

Minha intenção é passar essas 4 palavras de Altimir, para verbos: ouvir, observar, documentar, interpretar; porque passando-os aos verbos conseguimos medir a capacidade dinâmica de transformação que eles têm. Sendo analisados ​​separadamente, ou em seu potencial máximo, que são os 4, fazem parte do processo de escuta comprometida com as infâncias. Um escutar, observar, documentar e interpretar, que envolvem uma afetividade em jogo. Uma proximidade com os meninos e meninas, uma relevância e receptividade desse adulto que consegue captar o mundo que os meninos e as meninas trazem, brincam e se desdobram nas salas e pátios dos centros.

Essas pessoas adultas educadoras escutam porque desenvolveram a escuta como uma atitude permanente; atitude da qual não podem desprender-se porque é um elemento central em sua tarefa, e é assim que conseguiram entendê-la. Isso requer uma sensibilidade, que na minha opinião é trabalhada e fortalecida. Construir uma “orelha verde” é possível, num trabalho reflexivo próprio e em
com-junto com os/as outros/as.

Formação permanente, sempre a formação permanente
A ideia de formação permanente está ligada a esta sensibilidade, neste processo é fundamental uma formação que possa ser implementada, criada, procurada e promovida por cada equipe nas suas comunidades de pertença. As redes comunitárias existem para serem usadas e, como sempre, como as redes são pessoas, nós somos nós; e nós, é uma palavra que define, na minha opinião, ou elemento básico de uma cultura.

Então… nada nos impede de aprender dos outros e com os outros em cada território e contexto em que se desdobram os processos educativos e de cuidado com as crianças. E fora dele também.

A formação e a construção da sensibilidade para o desenvolvimento da tarefa em sintonia com os meninos e meninas são responsabilidade não só dos/as educadores/as, é responsabilidade de todos/as nós que trabalhamos nos centros. Eu chamaria isso de nos transformarmos para transformar.

O “ chão de baixo”
Montar cenários lúdicos potentes e desafiadores, na minha opinião, é uma tarefa de equipe, onde as educadoras têm uma responsabilidade maior por estar à frente das salas, mas onde todos temos habilidades para apoiar e proporcionar melhores oportunidades lúdicas e ambientes com maior potência para o desenvolvimento da brincadeira e da expressão em seu mais amplo espectro.

Ter o meio ambiente como aliado (ou terceiro/a educador/a) depende da decisão da equipe em transformá-lo a seu favor. Não é algo que só tem que recair sobre os responsáveis ​​e referentes das salas; respirar uma atmosfera lúdica, deve fazer parte dos objetivos do centro.

Não quero deixar de mencionar a importância neste processo do que a nossa querida Carmen Diez Navarro chama de “chão de baixo da escola”; chão que se move diariamente, chão que se move para lugares inesperados, desafia nossa humanidade e nosso papel profissional.

Esse “chão” que considero exige essa sensibilidade, que venho tentando expor neste texto, para convidá-los a um novo pensamento… esse chão se percebe ou não se percebe, se escuta ou não se escuta, sintonizamos ou não com as ideias, inquietações e problemas que os meninos e as meninas nos “contam” nas salas, em forma de palavras, mobilidade corporal, brincadeiras, mordidas, choros…

(…) aqui estou tentando esclarecer e colocar em ordem o que durante esses anos tenho pensado, sentido e ouvido sobre o assunto, porque a verdade é que essas coisas me assombram por dentro, por causa daquele “debaixo” que cada um de nós tem, e é aí que se cozinham as emoções, os desejos, os medos… e tantas coisas… E é agora, a raiz de optar com toda a seriedade por uma escola onde as relações são o motor de arranque da aprendizagem onde os afetos estão presentes, onde cada um/uma é levado/a em conta em sua particular e magnífica diferença, onde cabem os desejos, dúvidas, risos ou tristezas… das crianças e de todo o seu universo sentimental… (Díez Navarro, C 1998: 95 )

O “chão de baixo” da escola, trabalha com os outros, trabalha com nós mesmos, formação permanente, exposição a experiências estéticas e culturais, com diversidade de materiais, abertura para refletir sobre a tarefa com os/as outros/as, deixando-nos desafiar nesse processo, tanto pelas vozes das crianças, das famílias, dos/das companheiros/as de trabalho e pela nossa própria avaliação do que fazemos… Considero esses são pontos importantes, um caminho possível e potente de construir essa sensibilidade para o desenvolvimento da tarefa educativa.

Registo reflexivo da Jornada de Formação com Educadores da Primeira Infância, próprio: As experiências estéticas compartilhadas, como ir ver a Cortina Dalí no Sodré, participar nas atividades do “Dia do Património”, passear pelas ruas da Cidade Velha para exercitar o olhar , escuta, e todos os sentidos integrando o conteúdo “observação-escuta-registro”, observando e ouvindo a cidade, suas construções, objetos, personagens…ritmos…explorando os espaços do Teatro Solís, ouvindo uma história em uma de suas salas, permite o acesso a um tempo para si mesmo, para trabalhar consigo mesmo, com a memória, a sensibilidade; produz uma mobilidade do mundo interno. Nos descentralizamos da sala de formação para focar na formação, nada mais importante, principalmente se falarmos de formação para educadores da primeira infância…
“Sem esquecer que o espaço é sempre um campo estético, vinculado também à qualidade do próprio jogo simbólico pela sedução da beleza”. (Abad, J. 2006: 147)

Criar com os/as otros/as
A Primeira Infância precisa de adultos que sejam estimulados a exibir cenários ricos de brincadeiras e desafiadores, não apenas virar cestas com encartes, madeira, ou qualquer outro material… que possa ser um momento da sala… sempre oferecido… ou oferecemos como um centro.

Javier Abad também diz que participar e fazer parte de uma cultura lúdica nada mais é do que viver em relação por meio do brincar.

Ser estimulado a criar com os/as outros/as é um belo desafio, o desejo é alimentado enquanto nos preparamos para brincar, ser aquele/a cenógrafo/a de que falam Malaguzzi e Abad… e se sentimos que não temos essa capacidade, convidemos outros/as que certamente encontraremos como companheiros/as no centro para esta viagem…

Sandra Cardona
Lic. Psic. Professora. Conselheiro da Primeira Infância. Oficina de Plástico. Mestre em Psicologia e Educação. UdelaR.

Referencias bibliográficas:
• ABAD, J.; RUIZ DE VELASCO, A. (2011): El juego simbólico. Barcelona. Graó.
• ALTIMIR, D. (2010): ¿Cómo escuchar a la infancia?
In-fan-cia-Educar de 0 a 6 años. Rosa Sensat. Octaedro. Barcelona.
• DÍEZ NAVARRO, C. (1998): Proyectando otra escuela. Madrid. Ediciones de la Torre.
• HOYUELOS, A. (2004): La ética en el pensamiento y obra pedagógica de Loris Malaguzzi. Barcelona. Octaedro.
• WINNICOTT, D.W. (2006): Realidad y juego. Barcelona. Gedisa.

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