Camila Zentner Tesche
Daniela Finco
Trazemos neste relato a experiência da Escola Manuel Bandeira, da rede municipal da cidade de Guarulhos – SP, que atualmente vem realizando uma ação de desconstrução das práticas de comemoração de datas dentro da instituição de educação infantil, procurando debater com as crianças a questão do consumismo.
A experiência nos revela possibilidades de repensar a educação das crianças e a relação com suas famílias, medida em que as datas comemorativas presentes no espaço da educação infantil são substituídas por experiências que podem ser significativas para as crianças pequenas.
É preciso problematizar a lógica mercadológica presente nessa prática, muito comum em creches e pré-escolas, que acabam reforçando os aspectos comerciais, reproduzindo e reforçando valores presentes em nossa sociedade. Com a alta exposição das crianças a mensagens mercadológicas, cada vez mais cedo as crianças têm sido alvo e estimuladas a consumir. Este é um importante debate que envolve questões éticas, culturais, econômicas da educação das crianças pequenas, da relação com suas famílias e os valores de nossa sociedade.
A Escola recebe atualmente cerca de 700 crianças, na educação infantil e do ensino fundamental I, e está localizada na divisa de dois bairros, Pimentas e Bonsucesso, na periferia do município de Guarulhos. É a primeira escola de educação infantil municipal da região, inaugurada em 1982, trazia marcas da forte presença das datas comemorativas na organização do planejamento educativo, a partir de uma perspectiva tradicional de educação. A partir do ano de 2013, com a chegada de uma nova equipe de gestão, diretora e vice-diretora, do encontro de diversos professores/as, junto a coordenadora pedagógica e a supervisora de ensino que já iniciavam ali um trabalho com as famílias e a comunidade, a escola procurou construir um outro projeto de educação junto às crianças, e iniciou um processo de mudanças, envolvendo estudo e reelaboração do projeto político pedagógico da escola.
Por seu diferencial pedagógico, a escola, que faz parte do mapa de escolas inovadoras do MEC, também se tornou um importante local de referência e parceria para a formação docente de estudantes do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo – localizada também no município de Guarulhos, por meio da parceria no Programa de Residência Pedagógica.
Com o debate coletivo, expressamos no Projeto Político Pedagógico o nosso desejo de construir uma Escola Democrática, e fomos desenvolvendo diversos dispositivos de participação das crianças pequenas, desde o exercício da escuta em rodas de conversa, chegando ao trabalho por meio da representatividade em conselhos formados por crianças e adultos. As mudanças aconteceram também na forma de organização do trabalho pedagógico da escola, que encontrou no trabalho por projetos, um modo de ouvir voz as crianças, seus desejos e questionamentos, suas experiências, suas ideias, e sentidos construídos e compartilhados. Projetos que são escolhidos a partir da escuta e investigação sobre os interesses das crianças, e surgem não só quando são verbalizados, mas também da observação atenta às suas curiosidades (Rinaldi, 2006).
A escola passou a organizar seu trabalho pedagógico por meio de Projetos Temáticos, uma abordagem educativa centrada na criança e na possibilidade que ela possa expressar-se através de todas as suas diferentes linguagens. Neste processo um ponto central foi compreender que as crianças, até as bem pequenas, eram capazes de expressar suas ideias, de compartilhar e ressignificar coletivamente suas experiências. Destacamos uma questão central que norteou as transformações no projeto educativo: a compreensão de que a criança é crítica do seu tempo, participante ativa da realidade social, investigadora, elaboradora de hipóteses, cria soluções e alternativas criativas, transforma o mundo que a cerca.
Assim, na escola Manuel Bandeira o espaço das vivências, trocas e aprendizagens no coletivo acontece desde cedo, envolvendo as crianças na realização de rodas de conversa e nas Assembleias das crianças, onde a criança vivendo experiências significativas, pode expressar suas opiniões, ouvir, dividir, partilhar, fazer valer seus direitos, respeitar o espaço e o direito do outro.
Uma escuta sensível, a observação atenta e o diálogo com as crianças, foram nos dando pistas dos sentidos construídos e compartilhados pela cultura infantil. A fala por exemplo de uma das crianças, sobre o significado da comemoração da Páscoa “celebrar os ovos de chocolates”, nos auxiliou a compreender as contradições e os valores culturais e contradições de nossa sociedade, e desse modo consistiu no mote para problematizar qual o sentido destas datas para as crianças e pensar nas possibilidades de transformação.
Neste contexto a proposta de mudança do olhar para as datas comemorativas na escola foi uma importante oportunidade de refletir e desconstruir a cultura do consumo. O processo de questionamento foi cotidiano e as transformações foram acontecendo lentamente. Primeiro retirando aos poucos “as lembrancinhas” que estavam atreladas a muitas dessas comemorações, o chocolate da Páscoa, por exemplo, se transformou em uma arrecadação de chocolates para uma instituição de crianças carentes da comunidade; os presentes e as apresentações para os pais, mães, transformaram-se em cartões levados ao longo do ano. Questionamentos e novas problemáticas são trazidas pelas crianças, são feitas reuniões com o grupo de professores/as, aprofundando o assunto, e novas ações são realizadas visando a superação de antigas e cristalizadas práticas educativas com as crianças.
Ao analisar com as crianças comerciais de tv que dizem que “você só ama seu pai se der no dia dos pais aquele perfume de presente” ou fazer a comparação de preços e peso de uma barra de chocolate com um ovo de Páscoa, encontramos com as crianças possibilidades de problematizar o consumismo relacionado às datas comemorativas. Nas rodas de conversa com as crianças refletimos sobre o valor do afeto e da presença na vida de quem ama, ao invés da compra de um produto; ou, no exemplo seguinte, do quanto a barra, que é bem mais barata, tem mais chocolate que o ovo de Páscoa.
Nas rodas de conversa as crianças revelam as compreensões que fazem do mundo a sua volta e é no debate, na argumentação com o outro, adultos e crianças, vão construindo e ampliando seus conhecimentos, a partir de um olhar crítico sobre as coisas, as vivências e pessoas que estão ao seu redor.
Além da questão do consumo, pudemos refletir como as datas comemorativas, estão ligadas a calendário de origem de cultura cristã, como no caso da comemoração da Páscoa por exemplo, invisibilizando crianças de outras religiões e excluindo a possibilidade de construírem suas identidades e seus valores culturais respeitados e valorizados.
Fonte: Acervo da Escola
O trabalho educativo com as crianças pequenas nos revela que ser profissional da Educação Infantil é um trabalho bastante exigente, conforme nos alerta Michel Vandenbroeck (2009). Nos exige a capacidade de trabalhar em contexto de dissenso, de termos a habilidade de procurar novas soluções, capacidade de relação com o outro, capacidade de construir conhecimento com os outros, colegas, famílias e crianças, e talvez o mais desafiador de todos, atuar com foco na mudança.
Identificamos que algumas famílias resistem a essas mudanças, talvez porque trazem nas lembranças das vivências que tiveram, onde as comemorações de datas permeavam o calendário escolar, além de estarem também imersos em valores de uma sociedade do consumo. Por isso, o início de todo processo de mudança exige um diálogo direto com as famílias, um sistema de relações-comunicação no qual a participação ativa das famílias também é considerada importante parte da experiência educacional. Os questionamento e cobrança por parte das mães, pais, avós e outros responsáveis para que fossem feitas as festas, as cobranças das lembrancinhas e adornos para as crianças educação infantil, vão se transformando em um intenso e complexo diálogo e aprendizado sobre os diversos significados em relação à estas vivências.
Assim, a nossa escola encontrou mais um desafio, o de conhecer e dialogar com as práticas de socialização das famílias, o que pressupõe um confronto e um complexo entrelaçamento entre as culturas (BARBOSA, 2007), nos mostrando que o espaço da educação infantil é um lugar de educação não somente das crianças, mas também de nós adultas/os. Assim as famílias participam de comissões que trazem os anseios da comunidade, buscando caminhos ajudando a construir a proposta da escola.
Hoje o calendário da escola segue os projetos de escolha das crianças em mostras e feiras artísticas e culturais visando o protagonismo das crianças e a socialização e divulgação do conhecimento construído com as crianças. A experiência mostra, portanto, que é fundamental pensar coletivamente as possibilidades para a organização do trabalho pedagógico que respeite as especificidades das crianças pequenas de se expressarem por diferentes linguagens, valorizando suas capacidades de socialização, favorecendo a confiança, a criatividade e inventividade.
Nos revela a importância de realizar um esforço coletivo para refletir sobre propostas pedagógicas que tenham centralidade na criança pequena e nas suas especificidades e de procurar alternativas para superar práticas pedagógicas que se articulam tematicamente em torno das datas comemorativas e procuram preencher o tempo do trabalho pedagógico com as crianças pequenas, reforçando valores consumistas e as possibilidade de construção de uma prática educativa significativa junto com as crianças pequenas.
A necessidade de mudanças e transformações na Educação Infantil nos trazem desafios diários e fundamentais como as discussões e reflexões sobre o consumismo e possibilitam que as crianças e adultos/as elaborem novos significados para nossas experiências dentro e fora da instituição.
Alguns materiais de apoio:
Livros de literaturas infantis também podem ser importantes aliados na problematização com as crianças pequenas.
O livro “Pedro compra tudo (e Aninha dá recados)” de Maria de Lourdes Coelho, (Editora Cortez, 2004) conta uma divertida história que aborda este tema bastante sério e atual. Pedro é um menino que compra tudo o que vê, e Aninha é uma consumidora consciente. Esses dois personagens vão conscientizar as crianças e os que vivem à sua volta da problemática do consumismo desnecessário do ser humano, um estado perturbador e perigoso que confunde as necessidades materiais com as necessidades emocionais.
E o livro: A economia de Maria, de Telma Guimarães, ilustrações de Silvana Rando (Editora do Brasil, 2010) que conta a história das gêmeas Helena e Maria, que ganharam lindos cofrinhos da madrinha. Mas uma das meninas não quer nem saber de guardar dinheiro, comprando tudo o que vê, enquanto a outra, desde pequena, já sabe poupar, imaginando que economizar só vai fazer bem. Por meio de uma história que demonstra que saber gastar sem exageros é a melhor forma de lidar com o dinheiro, este divertido livro discute um tema bastante atual: a educação financeira.
Encontramos também no site do Instituto Alana, ideias para pensar uma proposta educativa voltada para a primeira infância, com diversas ações e projetos e Programas como o “Criança e Consumo”: que contém links com acesso para legislação específica, tem um“Caderno de Consumo Sustentável”, com orientações, vídeo, que podem ajudar na discussão desta temática com as crianças, ou ainda em reuniões com profissionais da equipe pedagógica e familiares, trazendo por exemplo como a realização de uma Feira de Troca de Brinquedos, por exemplo. etc.
Bibliografía
BARBOSA, Maria Carmen Silveira, (2007). “Culturas escolares, culturas de infância e culturas familiares: as socializações e a escolarização no entretecer destas culturas”. Educ. Soc. 2007, vol. 28, n.100, pp.1059-1083.
FINCO, Daniela, BUNZEN, Clecio. (2013). “Pedagogia de Projetos e a construção de uma Pedagogia da Infância”. In: FINCO, Daniela (Org.). Educação Infantil e direitos da infância. Recife: Pipa Comunicações / Unifesp, v. 01, p. 55-66.
RINALDI, Carlina. (2012). Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender. Editora Paz e Terra: São Paulo.
VANDENBROECK, Michel (2009). “Vamos discordar”. Revista Eletrônica de Educação, v. 3, n. 2, nov. São Carlos: UFSCar, pp. 13-22, p. 55-100.
FREITAS, Luís Carlos de. A luta por uma pedagogia do Meio: Revisitando o Conceito, in: PISTRAK, Moisey Mikhaylovich. Escola – Comuna. São Paulo: Expressão Popular,2009, p. 9 – 103.
ROSSETO, Edna Rodrigues Araújo. A organização do trabalho pedagógico nas
Cirandas Infantis do MST: lutar e brincar faz parte da escola de vida dos Sem Terrinha. 2016. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas (Faculdade de Educação Unicamp), Campinas.
Camila Zentner Tesche
Pedagoga com especialização em Educação Infantil pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora pedagógica da Escola da Prefeitura de Guarulhos Manuel Bandeira.
Daniela Finco
Professora do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), professora-preceptora do Programa de Residência Pedagógica em Educação Infantil.