Dra. Maria Clara Sidou Monteiro
Numa era de convergência midiática e digital (JENKINS, 2009), temos crianças que nascem inseridas na cultura dos smartphones e tablets, ou seja, são nativos digitais (PRENSKY, 2001; PALFREY; GASSER, 2008). Isso quer dizer que elas supostamente já saberiam desde a mais tenra idade a estarem conectadas no ambiente on-line. Consequentemente, elas acessariam à infinidade de conteúdos existentes na internet assim como estariam presentes nos sites de redes sociais, entre eles, o YouTube, a mais popular plataforma social de streaming de vídeos.
O YouTube começou em 2005 por ex-funcionários do PayPal, Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim. O seu modelo de negócios inicial consistia em colocar banners ao lado do processo de envio dos vídeos (DIJCK, 2009). Depois de sua compra pela Google, todo smartphone/tablet com o sistema operacional Android, passou a vir com o YouTube já instalado, o que contribuiu para a sua popularização.
O YouTube pode ser considerado o ápice da cultura participativa (JENKINS, 2009), pois qualquer pessoa pode ter uma conta e postar vídeos na plataforma. Assim, todos somos potencialmente produtores e consumidores de conteúdo na Internet, isto é, prosumers, termo cunhado por Toffler em 1980, que encontrou sua aplicação somente com a Web 2.0.
Neste contexto, o YouTube passou a divulgar como seu lema o “broadcast yourself”, literalmente “transmita a si mesmo”, ou seja, quantos mais sujeitos postarem vídeos no site, mais rentabilidade ele terá através da monetização dos conteúdos com a publicidade. Desta forma, surgem as figuras dos YouTubers, criadores de conteúdo para a plataforma. Consideramos como profissionais do YouTube, apesar do site não fazer essa distinção. Porém, são indivíduos que fizeram da produção de vídeos uma forma de trabalhar, conseguindo remuneração e seguindo as regras dos algoritmos do YouTube.
Diante desse cenário, realizamos uma pesquisa doutoral que teve como objetivo compreender o consumo de publicidade feito pelas crianças relacionado aos vídeos de YouTubers. Ela foi desenvolvida entre 2015 e 2018, no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A metodologia para a pesquisa foi qualitativa, pois o foco era a compreensão das falas das crianças participantes. Foram, no total, 15 entrevistas individuais com crianças entre dez e 11 anos de duas escolas públicas de Porto Alegre. Elas estudavam e moravam na Ilha da Pintada, que, apesar de fazer parte da capital, fica isolada pelo atravessamento do rio Jacuí. Ademais, outra característica da ilha é a desigualdade social. De um lado da avenida principal temos casas pequenas, algumas até de palafitas, do outro, temos mansões com vigilância 24 horas, voltadas para o rio. Assim, essas particularidades fazem parte do cotidiano das crianças entrevistadas.
O procedimento da pesquisa de campo envolveu observar as crianças enquanto elas escolhiam os vídeos que queriam assistir no smartphone da pesquisadora ou no computador da escola e fazer perguntas com base no roteiro semiestruturado. Os resultados da análise foram divididos em três eixos: competências, consumo de vídeos e publicidade.
Em relação às competências sobre os usos de aparelhos digitais como smartphones e computadores, as crianças sabiam funções básicas como colocar o vídeo em tela cheia, dar o play e pesquisar na tela do YouTube. Elas também identificavam os vídeos relacionados. Apesar de não terem noção de como a plataforma indica esses vídeos com base nos algoritmos que traçam os seus perfis e preferências de conteúdos, as crianças sabiam que os vídeos relacionados tinham a ver com o que elas já assistiram. Elas fazem uso dessa estratégia para descobrirem novos conteúdos. Desta forma, o conceito de nativos digitais acaba se limitando às funcionalidades das plataformas, mas não à dimensão cognitiva em relação aos conteúdos, o que implica diretamente na compreensão da publicidade.
Sobre o consumo de vídeos, as crianças assistem aos mais diferentes canais de YouTubers, tanto voltados para o público infantil como para adolescentes/jovens adultos. Entre os criadores citados pelas crianças estão Felipe Neto, Luccas Neto, Whindersson Nunes, Dani Russo, Julia Silva, Mari Maria, SirKazzio, AuthenticGames, KondZilla, Cia. Daniel Saboya, entre outros. Importante salientar que esses YouTubers possuem milhões de inscritos, ou seja, são profissionais e celebridades da plataforma. Entre as temáticas mais interessantes para as crianças estão futebol, games, dança e brinquedos, sendo as duas primeiras assistidas somente por meninos e as outras duas pelas meninas.
À medida que víamos os conteúdos dos canais junto com as crianças, apareciam os anúncios inseridos pelo YouTube como banners e comerciais antes/durante o vídeo. As participantes se irritavam com a intromissão da publicidade, pois o principal interesse era assistir ao conteúdo. Elas não reconheciam os banners como publicidade e os fechavam sem mesmo ler o anúncio. Já em relação aos comerciais, elas clicavam assim que aparecia o botão “pular este anúncio”.
A dinâmica mudou em relação aos vídeos dos YouTubers, pois, mesmo que eles tivessem um apelo mercadológico, as crianças escolhiam assistir a esses conteúdos. Eles não tinham o caráter de intromissão da publicidade. Pelo contrário, o YouTuber criava o vídeo com base no produto a ser exibido. Assim, foi criado o conceito de publicidade de experiência (MONTEIRO, 2018), sendo esta a publicização do produto através da experiência do criador de conteúdo no vídeo.Ele abre o produto, consome e/ou fala do mesmo como forma de gerar visualização para o canal e para o anunciante. Este tipo de publicidade mescla formatos anteriores como product placement e publicidade on-line, mas vai além, pois a criança, ao ver o vídeo da experiência do YouTuber, consome midiaticamente o objeto, o que leva ao desejo de compra. Os criadores de conteúdo praticam a publicidade de experiência em seus vídeos, dando visibilidade às marcas e incentivando a compra/consumo. Eles fazem contratos com anunciantes, porém isso não é esclarecido em seus vídeos, o que leva à nebulosidade da prática publicitária no YouTube.
A publicidade de experiência tem como vantagem ser feita pelo YouTuber, um tipo de influenciador digital que possui respaldo na plataforma entre seus milhões de inscritos. Ele consegue gerar uma identificação com seu público e está constantemente produzido conteúdo, o que torna sua presença relevante para os algoritmos do YouTube e consequentemente, mais sujeitos verão seus novos vídeos. As crianças escolhem os YouTubers que querem seguir e acreditam nas suas opiniões, por isso, eles são excelentes porta-vozes para as marcas. Pela relação de confiança e de afetividade, os YouTubes conseguem persuadir o público a desejarem os produtos anunciados sem necessariamente esclarecerem que o seu discurso é motivado por um anunciante. Deste modo, as crianças apresentaram desejos de consumo por objetos como PlayStation, bonecas Baby Alive e Bebê Reborn, iPhone, além de maquiagens, jogos, camisas de jogadores de futebol e tênis de marcas como Nike. Todas pedem produtos aos pais, porém a maioria dessas mercadorias não podem ser compradas pela família por causa do seu alto custo. Logo, a forma que as crianças acabam consumindo esses produtos é pelos vídeos.
Desta maneira, a pesquisa evidenciou que as crianças estão constantemente on-line, assistindo a diferentes vídeos todos os dias. Isso implica em um aumento de exposição à publicidade, tanto os anúncios
on-line inseridos pelo YouTube, como os publicados pelos criadores de conteúdo nos seus vídeos. A publicidade de experiência mostra como os anúncios podem se reinventar de forma a atrair a atenção do público, em especial, o infantil, sem esclarecer se é um espaço pago por anunciante. Por isso, é urgente o debate sobre os limites da publicidade nas plataformas digitais, visando tornar ético o papel dos influenciadores digitais e dos anunciantes nos conteúdos on-line.
Referencias:
DIJCK, José Van. “Users like you? Theorizing agency in user-generated content”. Media, culture and society, v. 31, n. 1, p. 41-58, 2009.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2 ed. São Paulo: Aleph, 2009.
MONTEIRO, Maria Clara. Apropriação por crianças da publicidade em canais de YouTubers brasileiros: a promoção do consumo no YouTube através da Publicidade de Experiência. 2018. 333 f. Tesis (Doctorado en Comunicación e Información). Facultad de Biblioteconomía y Comunicación, Universidad Federal de Rio Grande do Sul, 2018.
PALFREY, John; GASSER, Urs. Born digital.
New York: Basic Books, 2008.
PRENSKY, Marc. “Digital natives, digital immigrants”. On the horizon, MCB University Press, v. 9, n. 5, p. 1-6, oct. 2001.
Dra. Maria Clara Sidou Monteiro
Universidade do Ceará (ufc) Brasil