Reflexões pedagógicas. Artesanias infantis: pertencimento cultural e participação das crianças pequenas na produção cultural

Fabiana Oliveira Canaviera

A educação das crianças pequenas é permeada por aspectos culturais diversos, a cultura escolar, a cultura familiar, a cultura infantil e a cultura local ou territorial, que às vezes é permeada por práticas ancestrais. Dependendo do contexto educacional, da formação das educadoras e educadores, da intencionalidade pedagógica orientada pela gestão, essa composição cultural vai ser mais equilibrada ou firmar-se mais para um dos lados. Sendo assim, o entretecer entre as culturas (BARBOSA, 2006), vai se configurando de forma variada em cada instituição, mudando de lugar para lugar.

Nessa composição, surge a questão: o que podem as crianças na disputa cultural? Mas, quais crianças? As crianças são muitas e suas infâncias são múltiplas. A atribuição de sentido e significado construídos pelas crianças às suas vivências culturais é o ponto de partida e de chegada que interessa a essa pesquisadora, oriunda do Maranhão, que se situa entre o norte e o nordeste do Brasil, e é fortemente marcado pela cultura afro-brasileira e pela cultura indígena, ou seja, ricamente intercultural.

Contudo, a partir do limiar do século XXI as crianças passaram a ser reconhecidas também como produtoras de cultura, e nesse âmbito, passamos a valorizar suas produções e interpretações, principalmente a partir da luta das mulheres por incluir as crianças nas narrativas de reconhecimento.1 Ressalto, a infância tem sido historicamente uma preocupação das mulheres, não só pela maternidade, mas pelo trabalho feminino do cuidar que nos foi delegado pelo patriarcado. Trabalho desvalorizado, que em países colonizados e com longa história de escravidão de pessoas negras do continente Africano, ainda hoje concentram esse labor nas mãos de mulheres negras.

No Brasil, a cada dia mais, fortalecemos as pesquisas e estudos sobre as ações das crianças entre elas e entre elas e as pessoas adultas; suas interações, a produção das culturas infantis, suas linguagens, seu envolvimento e participação na construção da realidade social, estão sendo consideradas. Boa parte dessas pesquisas se dão a partir das instituições educativas, creches e pré-escolas, e por isso, pouco conseguimos acompanhar o que vem do entretecer cultural fora das instituições educativas, e os aspectos que compõem um éthos infantil das classes populares e de comunidades tradicionais, que ainda conseguem vivenciar as riquezas da sociodiversidade cultural brasileira.

Desse contexto surge o interesse pela pauta da participação infantil nos contextos culturais, a princípio, pesquisei sobre a participação delas em seu contexto educativo, como uma prática democrática de cidadania ativa infantil, esse olhar foi se estendendo para as ruas, em atos sociais e políticos, em manifestações em defesa da democracia que aconteceram em maior grau no Brasil desde o contexto do golpe político na ex-presidenta Dilma Rousseff. E hoje, se envereda para a participação das crianças na cultura, principalmente na cultura popular maranhense.

Considerando as crianças como seres estéticos, que se relacionam com o mundo imagético, ficcional e material; mas que, atuaram durante muito tempo apenas como expectadoras do mundo artístico e cultural, e ainda assim, sempre responderam e respondem com certa admiração quando se deparam com as produções artísticas e culturais; passei a refletir que: suas relações com os aspectos da cultura popular brasileira não eram tão debatidos no meio acadêmico da Pedagogia da Infância no Brasil como elemento pedagógico formativo, ou melhor, constituidor intrínseco de uma abordagem brasileira de Educação Infantil, centrando-se em práticas pontuais, festivas, por vezes estereotipadas, no interior de algumas instituições educativas.

Tendo por base a ressignificação cunhada por Willian Corsaro (2009) para a ideia de “socialização infantil”, passamos a considerar que as crianças fazem um tipo de reprodução interpretativa dos modos de viver e estar no mundo. Ou seja, manipulam, inventam, criam, transgridem, reconfiguram parte do que vêm, sentem, vivem e do que lhes é ensinado, levando as práticas culturais dominantes para o seu mundo, empregando à elas a suas roupagens. A essa forma interpretativa de compreender e organizar-se no mundo, que as crianças produzem entre elas, com pouca interferência adulta, é o que passamos a denominar de culturas infantis. A meu ver, essas práticas culturais das crianças pequenas, com linguagem própria, com suas especificidades, imersas em ambientes culturais diferenciados, são interculturais, são mesclas culturais e, poderiam ser bem mais.

Na maior parte das vezes consideramos interculturalidade apenas o convívio respeitoso entre culturas étnico-territoriais adultas-consolidadas. E não o convívio e as trocas das culturas infantis como forma de construir subjetividades imersas na pluralidade cultural (Silva, 2011). Principalmente, porque a infância é considerada o tempo de inserção na cultura, ou melhor, na cultura da sua família, do seu país, em uma cultura dominante, pronta, que será assimilada paulatinamente. É o tempo da construção dos pertencimentos, entre eles o cultural, mas não há uma ênfase para as trocas culturais das crianças entre elas, considerando as culturas com raízes ancestrais. E, infelizmente, há um predomínio monocultural até nas instituições educacionais.

Em São Luís, parte significativa da população da capital do Maranhão tem relações de pertença e parentalidade com os territórios tradicionais do interior do estado, comunidades que remanescem da resistência do povo preto ao colonialismo e escravização, assim como dos aldeamentos e territórios indígenas. Hábitos culturais de diferentes tipos permanecem em certos núcleos familiares e se deslocaram para os bairros populares da capital. Esse encontro cultural de povos distintos está nas ruas, nas brincadeiras infantis, nas festas tradicionais dos bairros populares, e promove uma interculturalidade quase imperceptível. Mas a questão é, essa riqueza cultural carregada pelas crianças faz-se presente nas instituições educativas?

Partindo dessa premissa, que há uma certa interculturalidade nas vivencias comunitárias, que estão presentes e visíveis nas festas populares, e no que se convencionou chamar de folclore. E, sendo as crianças participantes-brincantes desses folguedos, esses aspectos interculturais também comporiam suas práticas culturais, lúdicas, imaginativas, materiais, narrativas e corporais. Apreender como elas se apropriam de aspectos culturais em meio urbano é um desafio socioantropológico, por isso adentrar as escolas com elas tornou-se o caminho mais fácil para estudiosas da área, na tentativa de esboçar essa cartografia cultural. Todavia, nas instituições educativas a cultura e a interculturalidade se reconfiguram, não são transpostas tal qual nas comunidades, deste modo o diálogo com o território faz-se imprescindível.

Entender qual o papel da participação das crianças na nossa composição cultural é o que vem mobilizando nossos estudos atualmente. Parte da relevância desta temática é perceber as crianças na apropriação cultural, não na aquisição de aprendizagens, mas na interpretação, em certa antropofagia. Elas tem interesse em devorar isso que chamamos de patrimônio cultural? Ou tudo isso lhes é indiferente? Como elas se apropriam? Ficcionando fotos? Desenhando? Construindo engenhocas? Dedicadas às manualidades? Ou dançando e cantando? Lendo? E como significam essa apropriação?

Partindo do fato de que o mundo é constituído de objetos mundanos, instituições, monumentos etc, de cultura, o que nos faz dizer que cada cultura se presentifica para os homens como um mundo, pois, como diz Arendt “quanto mais povos, mais mundos” (Bidinotto, 2019, p. 114).

Conhecer como a “cultura dominante” integra as crianças e como elas, as crianças, estabelecem relações com as diferenças culturais e, especificamente, como essa relação atua na sociabilidade infantil, na formação de seu pertencimento étnico, na produção das culturas infantis entre elas e entre elas e as pessoas adultas, é buscar cartografar o substrato material e simbólico da produção cultural na contemporaneidade.

Sabemos que é dificílimo cercar o lúdico, as brincadeiras, as interações, as narrativas e os corpos infantis em movimento, entre tantos outros fatos miúdos que acontecem em meio às vivências culturais das crianças, principalmente, sem atribuir interpretações exteriores, cientificistas e psicopedagógicas. Talvez, seja preciso voltar e retomar os passos do paradigma indiciário de Ginzburg (1989), sustentado na semiótica, atento aos detalhes indiciais para a valorização de situações singulares é um paradigma que passa pela intuição, pelo faro, pelo golpe de vista, pelos indícios e sinais. O autor afirma: “[…] por trás desse paradigma indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto mais antigo da história do gênero humano: o da caça[…]” (p. 154). Tornei-me então caçadora, na espreita das crianças que zanzam pelas ruas de São Luís nas festas populares.

Seguindo Ginzburg (1989), além de mobilizar os elementos intrínsecos ao conceito de circularidade cultural tais como: classes sociais, artes, relações e diferenças culturais e de territorialidade, que dar-se pelo “relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se move de baixo para cima, bem como de cima para baixo” (p.13), vamos corroborar com o autor quando rechaça que a cultura popular seria uma “distribuição generosa” em que as classes dominantes/adultas fazem “de subprodutos culturais” que são passivamente assimilados pelas as classes subalternas, pelas minorias, e sim, trabalhar com a defesa de uma influência recíproca entres as culturas.

Cabe pontuar a necessidade de fazer essa discussão à luz do debate contracolonialista, pela visão do sul global, tentando pontuar a integração das culturas, e as disputas entre cultura dominante “branca” e cultura popular “multiétnica”; assim como, utilizando a ferramenta metodológica do feminismo negro, a interseccionalidade entre raça, classe, gênero, e também território para cartografar as pertenças culturais.

Dentro dos espaços educativos nos cabe caçar as miudezas, ou o que dentro dessas miudezas podemos destacar como: a) elementos culturais; b) pertença cultural das crianças e c) práticas interculturais. Sendo assim, observar as crianças em suas brincadeiras nos fluxos de entradas e saídas das instituições, nas brincadeiras, seus brinquedos e demais objetos que trazem de casa para escola, e também, nos objetos, imagens, desenhos, cartazes, fotografias e demais produções que nascem em diálogo com as famílias, possam indicar aspectos culturais diferenciados, e quem sabe apontarem uma intencionalidade pedagógica intercultural.

Podemos considerar para essas análises culturais, também: as roupas, sapatos, mochilas, bolsas, brincos, pulseiras e colares, toda a materialidade que possa ser escolha infantil, e portadora de uma cultura não homogeneizada, que não tenha sucumbido a indústria de massa de super-heróis e heroínas dos filmes e desenhos feitos por adultos para crianças, assim como também as práticas de alimentação, de acolhimento, de banho e de descanso feitas nas instituições e o quanto essas práticas respeitam as diferenças culturais das crianças, suas famílias e territórios.

Por fim, faço a conjectura de que no berço da cultura popular, da cultura da artesania (Sennett, 2015), dos ofícios e oficinas manufatureiras, possa haver indícios desse olhar para as crianças como artífices, partícipes das artesanias do mundo, principalmente como parte da cultura popular ou subculturas (Ginzburg, 1989), em contraste com a cultura dominante, hegemônica. Compreendendo popular no sentido do filósofo Jacques Rancière, daqueles e daquelas que não têm poder, logo fazem parte do povo, e suas produções serão da ordem do popular, garantindo que as diversidades culturais sejam inerente à democracia, enquanto poder do povo.

Fabiana Oliveira Canaviera
Professora Titular do Departamento de Educação da Universidade Federal do Maranhão

NOTAS:
1. O conceito de reconhecimento “tornou-se um termo genérico que articula diversas perspectivas de justiça classificadas como críticas e preocupadas com o desvelamento das profundas exclusões existentes que minam a efetividade democrática” (Honneth, p. 289, 2003). Para maior aprofundamento das perspectivas da Política de Reconhecimento recomenda-se Axel Honneth ou Nancy Fraser.
2. Categoria de auto identificação de um território quilombola no Maranhão. Almedia, Alfredo Wagner B. de. Frechal Terra de Preto: quilombo reconhecido como reserva extrativista. São Luís: SMDDH; CCN-PVN, 1997.

REFERÊNCIAS
Barbosa, Mª Carmen S. Culturas escolares, culturas de infância e culturas familiares: as socializações e a escolarização no entretecer destas culturas. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 1059-1083, out. 2007.

Bidinotto, Tatiana da Silva. A cultura popular ressignificando a vivência educativa na educação infantil. Dissertação de Mestrado. UFPR: Curitiba, 2019.

Corsaro, William A. Reprodução interpretativa e cultura de pares. En: Müller, Fernanda; Carvalho, Ana Maria Almeida (orgs). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com William Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009.

Ginzburg, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Silva, Clara. Intercultura e cura educativa nel nido e nella scuola dell’infanzia. Parma: Edizioni Junior, 2011.

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