O distanciamento social não limita a organização sindical e xs trabalhadores da educação na América Latina são xs principais defensores do direito à educação pública de nossos povos.
Podemos dizer que ensinar, neste tempo de pandemia, vem sendo realizado a partir de uma “pedagogia da conjugação”. Como afirma Miguel Duhalde, Secretário de Educação da CTERA,2 “o que a docência vem fazendo em tempos de pandemia é conjugar o verbo educar. Conjugar condensa duas belas palavras que identificam muito a ação de educar: “com” e “brincar”, admiráveis também em sua condensação porque simbolizam o “brincar com” que, por sua vez, refere-se aos jogos de linguagem com os quais construímos diariamente o fato educativo. Além disso, a conjugação nunca é definitiva, ela é transitória, transhumana e itinerante”.
A pandemia expôs, mais uma vez, a desigualdade. Essa desigualdade que como coletivo denunciamos e tentamos modificar. Desigualdade a qual nos rebelamos porque somos teimosamente docentes. Essa situação, tão complexa quanto inédita, destacou o lugar dxs professorxs na Escola Pública. As escolas nunca fecharam: ofereceram alimentos, acolhimento, escuta e continuam ensinando, resistindo e sonhando.
“A pandemia expôs, mais uma vez, a desigualdade. Essa desigualdade que como coletivo denunciamos e tentamos modiEscola Pública. As escolas nunca fecharam: ofereceram alimentos, acolhimento, escuta e continuam ensinando, resistindo e sonhando”
O avanço das políticas neoliberais de que padeceram, e ainda padecem, nossos povos latino-americanos, não só geraram desigualdade, vulnerabilidade e pobreza, mas também, ano após ano, o mercado insiste em impor sua lógica de produtividade capitalista no campo educacional com editoras, avaliações padronizadas e, nesse contexto, plataformas educacionais digitais.
“O mercado insiste em impor sua lógica de produtividade capitalista no campo educacional com editoras, avaliações padronizadas e, nesse contexto, plataformas educacionais digitais”
Diante disso, é essencial continuar dizendo como coletivo que é necessário lutar pelas condições de trabalho dxs trabalhadores da educação para que os direitos trabalhistas sejam garantidos, bem como a proteção da saúde dxs trabalhadorxs e estudantes. Só assim o direito à educação e, diante da pandemia, o direito à vida pode ser garantido.
Sabemos que a doença vem quando os sistemas imunológicos estão enfraquecidos e é por isso que compreendemos que os setores mais vulneráveis da população também são os mais indefesos contra o COVID. Hoje, como trabalhadorxs, exigimos e nos organizamos em defesa da vida, pois garantir condições de saúde, é também garantir o direito a uma vida digna.
Na Argentina, a Confederação dos Trabalhadores em Educação da República Argentina (CTERA), filiada à Internacional da Educação América Latina (IEAL), assinou uma normativa no âmbito da paridade nacional, isto é, com representantes do Governo e a presença de outros sindicatos nacionais dx professorxs. Cada ponto contemplado é a garantia de um direito conquistado para xs trabalhadorxs da educação.
Compartilhamos alguns dos pontos relevantes em relação ao contexto pandêmico:
- Reconhecimento do trabalho não presencial, garantindo direitos estatutários. Nenhuma alteração nos salários ou licenças. Preservação dos direitos adquiridos completos (incluindo a associação e os direitos sindicais).
- Jornada de trabalho: será respeitada a carga horária da posição base, sem gerar sobrecarga de trabalho. Garantindo o direito à desconexão digital e à preservação da privacidade familiar.Neste ponto, acreditamos que é importante destacar, e tornar visíveis, as tarefas de cuidado e a necessidade dos Estados colocarem na agenda pública a distribuição equitativa delas, que não são de natureza familiar ou doméstica, mas preocupam toda a sociedade que está em busca da igualdade de gênero. O trabalho docente é uma atividade que registra o maior percentual de mulheres em seus respectivos postos de trabalho. Aproximadamente 80% da docência é realizada por mulheres, chegando a 95% em alguns níveis do sistema educacional, como o Nível Inicial, e/ou Centros Educacionais que trabalham com a primeira infância.
A comunidade docente está sendo substancialmente afetada nesse período, uma vez que, composta em sua maioria por mulheres, exerce o duplo papel de maternar. Tornar esse problema visível permite promover licenças de ma/paternidade (licença para mães e pais) e repensar o cuidado e a criação das crianças como um assunto público.
- Risco ocupacional, pois xs trabalhadorxs devem ter total segurança de risco ocupacional.
- Recursos tecnológicos, tanto a nível nacional quanto jurisdicional, deverão ser disponibilizados xs professorxs para facilitar as tarefas na virtualidade; comprometendo-se o Ministério da Educação da Nação propor um programa progressivo para promover acesso para xs professorxs aos recursos tecnológicos.
Neste ponto encontramos novamente a lacuna da desigualdade, um alto percentual de estudantes em nosso país não tem possibilidade de conexão e/ou não tem dispositivos, então xs professorxs levam materiais para suas casas ou escolas.O UNICEF Argentina, em sua segunda pesquisa nacional, entre dezembro de 2019 e dezembro de 2020, estimou que, de acordo com a projeção feita, 62,9% das crianças serão pobres.
A pesquisa realizada pela CTERA3 mostra que 46% dxs professorxs têm acesso zero ou muito limitado a um computador em sua casa, e que apenas 30% dxs professorxs têm um computador permanentemente para trabalhar. Por outro lado, há 17% dxs professorxs que não têm celular com a possibilidade de se conectar à internet.
A educação é um direito e, como tal, o Estado é responsável por garantir sua oferta obrigatória em condições de igualdade social. Hoje, a conectividade e os dispositivos digitais são a forma de garantir isso, razão pela qual insistimos que o acesso a eles seja universalizado e que xs trabalhadorxs recebam as ferramentas necessárias para realizar sua tarefa.
“A educação é um direito e como tal, o Estado é responsável por garantir sua oferta obrigatória em condições de igualdade social”
- Formação dx Professorxs: o Ministério da Educação da Nação apoiará as ações de formação dx professorxs em serviço e gratuitamente para o trabalho virtual durante este período, com a participação de organizações sindicais.
Este ponto é fundamental para xs trabalhadorxs. Devemos fazer parte das discussões em torno do conteúdo e plataformas a serem utilizadas. É importante que não sejam contribuições de fundações e ONGs multinacionais, que mercantilizam a educação por meio do financiamento de seus próprios projetos. A educação é um bem público, precisamos de plataformas padronizadas ou propostas situadas? Educação para reprodução ou libertação? A formação dx professorxs é geralmente considerada como uma fase preliminar e separada do trabalho docente. Na realidade, não existe essa separação porque no trabalho docente a formação permanece como dimensão constitutiva.
Para explicar a pedagogia da conjugação proposta por Miguel Duhalde4 e poder “conjugar o verbo educar”, será necessário pensar nas estruturas curriculares e fazer um5 exercício discursivo teórico/prático. Projetar uma formação que não se reduza à melhoria no uso de novas tecnologias, mas que vá além e coloque em discussão o próprio processo de construção e definição de currículo, práticas de ensino e acesso ao conhecimento, a reconfiguração de postos de trabalho e sistemas de avaliação que correspondem às condições contextuais.
- Ao voltar à presencialidade, devem ser tomadas as precauções necessárias para que as condições de saúde e higiene dos estabelecimentos educativos sejam adequadas para a preservação da saúde dxs professorxs, dxs alunxs, das equipes gestoras e dxs auxiliarxs dedicados ao trabalho educativo. Os protocolos de retorno devem ser construídos em conjunto, reconhecendo todas as vozes que compõem a comunidade educacional em cada jurisdição e com a participação dos sindicatos dx professorxs.
Como trabalhadorxs da educação, sabemos que colocar em palavras as condições de trabalho é uma conquista da organização sindical. Esse “conjugar” é construído diariamente, sempre em relação a outro, ou outro, dinâmico, variável, com diferentes vozes e olhares que enriquecem e complexificam a realidade em busca de uma sociedade mais justa.
Essa situação de excepcionalidade mundial nos chama a nos reinventar, a voltar a existir, re-existir. Com a convicção de que a Escola é o espaço público que é habitado pelas famílias de nossas comunidades e se não houver espaço público, não haverá possibilidade de construção do comum, não há espaço de encontro.
Entendendo que educar é cuidar, quem deve cuidar daqueles que cuidam? Qual o papel dos Estados diante da pandemia? Sabemos que os governos liberais estão acossando a nossa região, também sabemos a abordagem díspar da situação sanitária, que dá conta de suas políticas. Na Argentina, se colocou em andamento o fortalecimento do sistema de saúde, pois após 4 anos de políticas neoliberais de redução orçamentária, o Ministério da Saúde foi rebaixado para o posto de departamento. Hoje, o Ministério foi restaurado e isso afetou a tomada de decisões e o orçamento para a saúde como política pública. Em outras áreas, também, a abordagem é diferente das políticas que estavam em vigor: foram restritos os aumentos nas taxas de serviços públicos e mais programas de compensação financeira foram realizados. Ações que, em um contexto de extrema desigualdade, são sempre insuficientes, mas que colocam em tensão e disputam um olhar de cuidado e concepção do Estado, como ente que garante direitos sociais em oposição a modelos como o do Brasil ou do Peru, onde são realizadas políticas de redução para um Estado mínimo, o que promove um “salve-se quem puder” entre xs cidadãos.
“Essa situação de excepcionalidade mundial nos chama a nos reinventar, a voltar a existir, re-existir. Com a convicção de que a Escola é o espaço público que é habitado pelas famílias de nossas comunidades e se não houver espaço público, não haverá possibilidade de construção do comum, não há espaço de ncontro”
Em relação às crianças, o compromisso deve ser ainda maior, os sistemas de proteção estão desarticulados. Entendemos que é essencial avançar nas políticas assistenciais, e colocar a agenda da primeira infância em diálogo com outros setores, articulando agendas feministas, interculturalidade, movimentos sociais, LGBT+, movimentos, afrodescendentes, movimentos sem-terra.
Fazemos parte de uma América Latina que disputa sentidos de libertação e emancipação organizando-se coletiva e sindicalmente. Por isso, em maio de 2020, o Comitê Regional de Educação Internacional para a América Latina (IEAL) manifestou6 a necessidade de que, para a reabertura segura dos centros educacionais do continente, deve ser atendidas cada uma das condições mínimas acima apresentadas.
Essas condições devem ser garantidas não apenas no que diz respeito as questões sanitárias, mas também em seu financiamento. Uma maior distribuição da riqueza é a única maneira de deixar para trás tanta pobreza e desigualdade.
“A riqueza no mundo é o resultado da pobreza dos demais. Devemos começar a encurtar o abismo entre ricos e pobres” (Eduardo Galeano)
Alejandra Bianciotti
Daniela Sposato
Professores de Nível Inicial. Membros do Conselho da Revista Infancia Latinoamericana da Argentina
Notas
1. Na Argentina, decidimos utilizar a letra “x” para evitar que a linguagem invisibilize otrxs gêneros ou sexualidades no presente e no futuro.
2. Professores de Nível Inicial. Membros do Conselho da Revista Infancia Latinoamericana da Argentina.
3. Confederação dos Trabalhadores em Educação da República Argentina. É uma organização sindical fundada em 1973, que reúne sindicatos de professores de todas as províncias da Argentina. Faz parte do Latin American Education International (IEAL).
4. PESQUISA NACIONAL CTERA: Saúde e condições de trabalho docente em tempos de emergência sanitária COVID19. http://mediateca.ctera.org.ar/files/original/b9bddf0cadd4b573ee8e069c2ae93d30.pdf
5. Coluna Editorial XV Buenos Aires, 28 de junho de 2020. Miguel Duhalde Secretário de Educação CTERA.
6. Miguel Duhalde, “Columna editorial XV”, Buenos Aires, 28 de junho de 2020.
7. Declaração do Comitê Regional de EI para a América Latina.