Entrevista. Algumas contribuições de Paulo Freire para os territórios educativos das infâncias

(rechos retirados de entrevista feita por Pablo Ribeiro com a arquiteta Beatriz Goulart na Semana de Educação Participativa no programa Capital Natural em 23/10/2021))

Pablo
Olá, seja bem-vindo, seja bem-vinda, ao Capital Cultural que agora também é um podcast. Presta atenção na seguinte frase: Ninguém educa ninguém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Essa frase é do educador Paulo Freire um dos pensadores mais influentes do mundo e resume o brilhantismo e, também, a marca subversiva do seu pensamento, o respeito horizontal entre educador e educando, a promoção da postura ativa, critica e libertária. Não há crescimento, não há transformação que se sustente se elaborada ou implementada de cima para baixo.

No ano que celebramos 100 anos do nascimento do mestre, o seu método transformador é mais urgente do que nunca. O Brasil precisa de todos os esforços para implementar agendas socioambientais. E o mesmo vale para o planeta envolto com o maior desafio da sua história: neutralizar as emissões de carbono para estabilizar a temperatura global, digo estabilizar; reduzir a desigualdade entre povos e assim transformar a lógica produtiva em direção à ética, à preservação e à vida. Então para falar um pouco sobre isso e homenagear também Paulo Freire, mostrar como seu pensamento tem tudo a ver com o desenvolvimento sustentável, vou receber hoje a Beatriz Goulart arquiteta, urbanista, pesquisadora de espaços educativos escolares e urbanos, mestre em pesquisa e pesquisadora do Grupo Ambiente e Educação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Vamos conversar com Beatriz porque a Beatriz tem uma história voltada para a área de arquitetura.

Como é que é arquitetura conversa, para você Beatriz, com o ativismo e com a educação?

Beatriz
Obrigada pela pergunta, Pablo. Primeiro quero agradecer o convite e que honra estar aqui com todo mundo, celebrando Paulo Freire. Bom, eu posso te responder isso pensando na minha infância, na minha chegada ao mundo, quando nem imaginava me tornar arquiteta. A Clarice Lispector1 em seu livro A Descoberta do Mundo, fala que desde o berço a criança sente, desde o berço ela se relaciona com o mundo e ela vai saber o que desejar dele. Ou seja, a qualidade e as características deste berço já vão moldando este ser. Quantas crianças nascidas no Brasil tem um berço? Então, para mim a relação da arquitetura com a educação é essencialmente essa, do corpo com o ambiente, do corpo sendo marcado pelos lugares que habita. De onde a gente está, de onde a gente pisa. O Leonardo Boff2, na Fábula da Águia e da Galinha fala que a gente pensa a partir de onde nossos pés pisam. Então a ideia de arquitetura que pratico não é apenas a de um prédio bonito e bem construído, mas de algo que faça sentido para vida não só do ser humano, mas de tudo que é vivo, de tudo o quanto há.

E aí, nos processos educativos, na perspectiva crítica e libertária de Paulo Freire, a gente não aprende só na escola, mas aprende o tempo todo, com todo mundo, em qualquer lugar e um aprende com o outro num processo de co-aprendizagem, dialógico. Não é isso que o mestre PF nos ensina? Isso tem muito a ver com a relação com o ambiente, construído e não construído. Trago aqui uma citação literal de Paulo Freire, retirada do Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa: O descaso pelas condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis. (…) É incrível que não imaginemos a significação do “discurso” formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloquência do discurso “pronunciado” na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço.

A arquiteta Bia Goulart e uma menina desenhando a nova escola.

Sim! A materialidade da escola, lembrando que nela estão incluídos os objetos, os espaços construídos, mas também os não construídos, os intervalos, os intermediários. O que liga um lugar a outro é um lugar importantíssimo. Lugar sem nome, diria Flavio Motta3. O que esse ambiente me provoca a pensar, a sentir e como é que eu devolvo isso transformando esse ambiente.

Então, para mim, tem tudo a ver essa relação e, agora, acho que a gente está engatinhando, já que comecei com o berço da Clarice, acho que estamos começando a entender que somos parte desse movimento muito maior e começamos a perceber que a gente estragou muita coisa e que é hora de aprendermos com esses outros seres vivos e rever com certeza tantos processos educativos como a arquitetura também.

Pablo
A pergunta que vou fazer para você, Beatriz, é em relação a pensar escola. Nós vivemos no Brasil em que escolas círculo-militares estão aí em discussão, modelo de escola mais duro, totalmente ao contrário da escola horizontal, da escola mais participativa, onde os pais participam da escola, onde os professores participam daquela unidade também, os alunos opinam… que era o que pensava Paulo Freire.

Beatriz
Sim. Pensar a escola é tão interessante. Eu tenho pesquisado isso há bastante tempo… estou há 40 anos formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo, mas desde pequena eu vi construir uma escola na frente de casa que é igualzinha à FAU. Depois eu vi que foi o arquiteto Vilanova Artigas que projetou as 2 escolas onde passei toda minha infância e juventude. Espaços que frequentei diariamente, que me marcaram tanto ou mais que minha casa, que meu quintal. Mas nenhum desses prédios escolares, apesar de serem belíssimos exemplos da arquitetura paulista e brasileira, nenhum deles foi pensado com a participação de quem ia usá-los. Esta era a lógica de produção de escolas públicas, na década de 60 e 70 do século passado e, pasmem, ainda é! Por mais que a gente considere ouvir as crianças, pedir que desenhem seus sonhos, tudo isso desaparece diante de códigos e leis feitas para outros contextos, fora de sintonia com o projeto pedagógico das escolas e os planos e leis municipais, estaduais e federais de educação. Uma cartilha tão antiquada quanto a Caminho Suave4, desconsiderando totalmente as culturas e os biomas dos respectivos lugares onde tais escolas serão construídas e utilizadas. Um processo de produção da materialidade da escola totalmente dissociado do currículo, da gestão e das lógicas territoriais locais. Eu gosto muito de pensar em três instâncias codependentes: território, gestão e currículo. Ou seja, o que que a gente vai fazer aqui nesse lugar e o que esse lugar tem a ver com o que a gente vai fazer nele?

Sugestão de criança para a escola que você quer.

Nossa tradição tem sido na direção contraria desta articulação. Somos resultado de escolas que funcionaram (e muitas ainda funcionam) na lógica do Vigiar e Punir, do Foucault. Como nossos corpos controlados poderão se libertar e contribuir para a produção de espaços comunitários de educação democrática, em sintonia com a educação crítica e libertária que Paulo Freire propõe?

Então esse pensar e produzir escola se dá no campo de uma tensão, de confronto de valores e crenças, assim como bem analisa o Miguel Arroyo5 no Currículo, território em disputa. Um caminho para o entendimento e superação desta tensão é colocar em diálogo os campos da arquitetura, do urbanismo e da educação básica, na perspectiva de sua integração… e desde a formação do arquiteto, ou do pedagogo e do gestor público. Essas caixinhas são muito autônomas com suas lógicas próprias naturalizadas. Você entra em uma faculdade de arquitetura e tem lá como se fazer uma escola, geralmente no terceiro ano, separando a área administrativa da área de serviços e da pedagógica, como se os serviços e a administração não fossem também ações pedagógicas. Estas separações contribuem para que se reproduzam, na escola, as lógicas colonizadoras e preconceituosas. Já se perguntaram por que o sanitário das faxineiras e das cozinheiras são menores e menos bonitos do que os sanitários dos professores e estes, por sua vez, não são tão equipados com materiais tão nobres quanto o sanitário da direção da escola? E o local de descanso? Existem locais de descanso para as crianças? E para os adultos? É permitido descansar na escola? Até mesmo em escolas que tem repensado seus currículos e projetos pedagógicos na direção do que Paulo Freire propõe, mesmo nelas, a maior parte das escolas públicas brasileiras, os espaços ainda seguem preceitos de uma educação controladora, colonizadora, autoritária, expressa em espaços segmentados, gradeados, trancados.

Lembro aqui de Milton Santos6 anunciando a força dos homens lentos, e a importância de quebrar os tempos controladores e acelerados que impedem as brechas de descanso, do inútil, da conversa inútil, imprevista, que fortalecem nossos sonhos e nossa criatividade, tão necessários para sairmos do buraco onde nos metemos.

Os círculos de cultura7 propostos por Paulo Freire têm este poder. Precisamos reinaugurá-los!

A consciência territorial necessária para darmos este salto requer tempos livres. Essa consciência praticada coletivamente dá condições para que seja forjado o sentido de morada coletivo, o senso de habitar. Primeiro habitar, e depois construir, como propôs Heidegger8 em seu belo texto Construir, habitar, pensar.

Escolas e cidades são espaços coletivos e assim devem ser sonhados, projetados, construídos, ocupados e cuidados/administrados: coletivamente!

Quero lembrar um exemplo muito curioso aqui. O fato se deu na quando Paulo Freire era secretário de educação na cidade de são Paulo, no governo da Luiza Erundina, entre 1989 e 1991. Uma das coisas que ele fazia sempre era visitar as escolas. Numa dessas visitas, numa escola de ensino fundamental (EMEF), com crianças de 7 a 14 anos, ele falou espantadíssimo: cadê os brinquedos? Ele estava com a Mayumi de Souza Lima, minha mestra falecida, que era arquiteta e educadora que abriu todo esse caminho que eu estou seguindo – graças a ela, uma pioneira. Mayumi tentou explicar: “Ah, professor aqui é uma EMEF, não tem brinquedos. Brinquedos vão até a pré-escola. E ele: Por que isso? A infância acaba com 6 anos? Tem que ter brinquedo. E alguém da equipe o informou que não tinha como, que na “planilha de compras para EMEFs não estavam disponíveis para compras brinquedos de parque. Ele não aceitou e desafiou Mayumi a resolver a questão. As crianças precisam brincar!

Mayumi elaborou rapidamente um plano e convidou a artista plástica Elvira de Almeida, que foi minha professora na FAU, para visitarem os depósitos da prefeitura que estavam onde estavam armazenados muitos postes de madeira e luminárias metálicas que haviam sido trocados recentemente por postes de concreto. E assim surgiram os brinquedos mais incríveis já produzidos na nossa São Paulo. O processo está todo relatado no livro Esculturas lúdicas. Passados mais de 30 anos, o que temos hoje na cidade de São Paulo e em quase todas as cidades brasileiras: escolas de ensino fundamental quase sem brinquedos no fundamental 1, no fundamental 2 e no ensino médio totalmente sem nenhum. Por mais que na teoria se estude e se comprove a importância das atividades lúdicas para nossa formação, ao longo de toda vida, nos privamos desses momentos que são absolutamente desconsiderados em sua potência pedagógica. Uma lástima!

Então, talvez seja mais importante do que construir mais escolas, transformar as que já temos em espaço educadores de verdade. Espaços que nos ensinem a aprender e a viver juntos. Ou a gente se RAONI, ou a gente se STING, conforme grafite na ECO-92 no Rio de Janeiro.

Pablo
O modelo freiriano está de alguma forma inserido na discussão da agenda 2030 da ONU, e na agenda 2022 de eleição brasileira?

Beatriz
Espero que esteja!
E não posso deixar de pensar na volta às aulas no contexto da pandemia do Covid 19, na questão da escola saudável e da sustentabilidade. Primeiro, a gente se dá conta de que a escola nunca foi um ambiente saudável. Ventilação e iluminação natural são itens desconhecidos na engenharia das edificações escolares; é sempre luz acesa e ar-condicionado o dia inteiro. Espaços superlotados, áreas externas, quando existem, são desestruturadas ou interditadas. E a pandemia nos exige olhar para isso, para o ar livre, para o distanciamento, para a higienização. Eu não acho correto falarmos em oportunidade e lições aprendidas por sobre 600 mil mortos, mas se trata mesmo de olhar para a morte, para a brevidade e fragilidade da vida. O que nos obriga a olhar para o tipo de ambiente que escolhemos para ser o nosso locus de aprender a aprender, de produzir conhecimento, de compreender o que já produzimos até aqui, desde sempre. Isso tudo cabe numa sala 7×7? Cabe em 50 minutos? Cabe na interdição de transitarmos livremente por todos os ambientes da escola, seja lá qual for nossa idade e posição no grupo? O Rui Canário, educador português, trata disso no seu livro A escola tem futuro? trazendo questões sobre a naturalização da forma e da organização escolar e a resistência para que se criem outros modos de fazer escola. Esse contexto colabora fortemente para a proliferação de práticas conservadoras que, em nome de uma violência externa, produzem resistências internas às inovações.

Então, não se trata de arquitetura escolar, mas de ressignificar e requalificar a forma e a organização escolar, para, a partir disso, dar abrigo material suficientemente generoso para o tamanho desta transformação. Uma coisa precisa estar ligada à outra. Este é o ponto: educação dialógica exige territórios democráticos, sustentáveis e belos. Uma coisa depende da outra. Compreender e propiciar esta interdependência é nosso desafio como arquitet@s-educador@s, como educador@s-arquitet@s.

Beatriz Goulart
Arquiteta-Urbanista e representante brasileira no grupo de trabalho Crianças e Arquitetura da União Internacional de Arquitetos (UIA Children) e consultora da Organização
dos Estados Ibero-americanos e o Instituto Arapyaú.

Notas:
1. Nota da tradução : Clarice Lispector foi uma escritora e jornalista brasileira nascida na Ucrânia. Autora de romances, contos e ensaios, é considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX.
2. Nota da tradução : Leonardo Boff é um teólogo, escritor, filósofo e professor universitário brasileiro. Adepto do socialismo, Boff é um expoente da teologia da libertação no Brasil e conhecido internacionalmente por sua defesa dos direitos dos pobres e excluídos.
3. Nota da tradução : Flavio Motta foi professor, historiador da arte, desenhista e pintor.
4. Nota da tradução : Camino Suave é uma obra didática, uma cartilha de alfabetização, concebida em 1948 pela educadora brasileira Branca Alves de Lima (1911-2001), que utilizou o método silábico e se tornou um fenômeno editorial.
5. Nota da tradução : O sociólogo Miguel González Arroyo é um grande defensor da educação integral. Nascido na Espanha em 1935, Arroyo chegou ao Brasil fugindo da ditadura franquista no final da década de 1950. Aqui fez carreira na educação, defendendo que a pedagogia deve dialogar com a realidade dos alunos, principalmente nas áreas mais vulneráveis.
6. Nota da tradução: Milton Almeida dos Santos foi um geógrafo, escritor, cientista, jornalista, advogado e professor universitário brasileiro. Considerado um dos mais renomados intelectuais do Brasil no século XX, foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil que ocorreu na década de 1970.
7. Nota da tradução: Sistematizados por Paulo Freire no início da década de 1960, os Círculos de Cultura se baseiam em uma proposta pedagógica, cuja natureza radicalmente democrática e libertadora propõe uma aprendizagem integral, que rompe com a fragmentação e exige um posicionamento diante dos problemas vivenciados. em um determinado contexto. Para Freire, essa concepção promove a horizontalidade na relação educador-aluno e a valorização das culturas locais, da oralidade, opondo-se em seu caráter humanístico à visão elitista da educação.
8. Nota da tradução: Martin Heidegger foi um filósofo, escritor, professor e reitor universitário alemão. Ele é amplamente reconhecido como um dos filósofos mais originais e importantes do século 20.

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