História da educação. Mário de Andrade e a Pedagogia Macunaímica

Mário de Andrade e a Pedagogia Macunaímica ao nível das crianças e em espaços abertos

Neste ano de 2022, celebramos os 100 anos da Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo, em 1922, e que elevou a cidade, por assim dizer, à condição de metrópole cultural no século XX. Suas reverberações ocorrem até hoje, nos mais variados âmbitos da cultura e algumas das personagens que protagonizaram a experiência fazem parte hoje de nosso cânone artístico.

O poeta escritor Mário de Andrade foi uma dessas personagens e, segundo muitos/as estudiosos/as, foi quem trouxe para o movimento, que se iniciava, uma verdadeira postura programática, no desejo de assentar as bases de uma Cultura Nacional na constituição das identidades brasileiras e no ingresso à modernidade, com a valorização do que nos era próprio, passando para isso pela cultura popular e pelo resgate das tradições, da memória e do folclore2. Em suas palavras:

EU SOU TREZENTOS…(7-VI-1929)
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!
si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos taxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo

 (In. Andrade, M. Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 221.)

Assim, Mário de Andrade abraça a oportunidade oferecida pelo prefeito de São Paulo à época, tido como um representante da burguesia ilustrada paulista, Fábio Prado, e torna-se figura-chave na implantação dos 4 primeiros Parques Infantis, na condição de um dos idealizadores e primeiro gestor do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal durante o período de 1935 a 1938.

Em espaços abertos e com instrutoras contratadas e formadas para organizar as atividades para crianças de 3 a 12 anos, filhos e filhas de famílias operárias, era propiciada a oportunidade de que as crianças pudessem viver a infância brincando, em contato com a natureza, se apropriando de manifestações culturais brasileiras pesquisadas por Mário de Andrade e produzindo história e cultura. As crianças maiores frequentavam os parques em período oposto ao da escola, enquanto as crianças de 3 a 6 anos ficavam em tempo integral nos parques infantis.

Mostram a representação da Nau catarineta

 

Crianças vestidas de pétalas


Formação da vitória-régia pelas crianças revelando as manifestações
populares tradicionais investigadas por Mário de Andrade

Alguns relatos recentes das crianças então frequentadoras dos Parques Infantis nos informam sobre como as crianças viviam essa experiência:

Nós, crianças, brincávamos na rua. Agora, com o parque, meus pais podiam trabalhar mais tranqüilos, ele na SP Railway e ela na fábrica de tecidos. O parque para nós foi a liberdade. Aqui podíamos nos divertir sem vizinhos brigando: “Não faça isso, não pule o muro, não suba na cerca”!

Mas é que no parque eu tinha tudo o que precisava: as professoras que tomavam conta, aulas de música, crochê, bordado; era tanta coisa boa que eu ficava por aqui mesmo, não voltava para casa.

O terreno era todo grande, e havia bancos para a gente sentar no meio das flores. Era lindo! O parque tinha poucas salas. Era só o lugar onde serviam o lanche e a salinha onde Dona Ida ensinava os trabalhos manuais”
(Revista Escola Municipal 1985, p. 6-29, apud Faria, passim)

Essa foi a origem da rede de educação infantil paulistana – a primeira experiência brasileira pública municipal de educação, embora não-escolar, para crianças de 3 a 6 anos.

Fica a pergunta: Como as linhas dessa tessitura unem as iniciativas educacionais, do âmbito das políticas públicas de Educação e de Cultura, com os princípios modernistas inicialmente apontados durante a Semana de Arte de 1922 e, posteriormente, em busca de amilhoramento, como diria Mário de Andrade, reformulados e aperfeiçoados por iniciativas como o Movimento Pau-brasil e o Movimento Antropofágico3?

Com concepções e objetivos diferentes, os intelectuais modernistas e os políticos paulistas encontraram, nesse movimento, um projeto comum, ao destacar a relevância de uma política cultural nos processos de formação e educação públicas. Para além da valorização da pauta cultural como formativa e fundamento de uma sociedade moderna e mais democrática, havia também a preocupação com um projeto nacional, de país e sociedade, que se impunha como necessidade histórica.

No nível de gestão da política, a confluência ocorre na manifestação do idealismo de Mário de Andrade, com sua atenção e seu respeito para com as crianças, que fazem com que ele conceba um espaço para educar as crianças das camadas populares, nas experiências com jogos, espaço aberto e nacionalismo, em tudo diverso daquelas ações voltadas para disciplinar o operariado, comuns naquele período em várias partes do mundo, afeitas ao regime totalitário como o da Alemanha de Hitler. Em suas ações, a percepção das atividades educativas não é a de um sinônimo do trabalho, mas como momentos de brincadeira e ócio4 em que há folguedos e oportunidades de vivenciar manifestações da cultura brasileira, de expressar-se, conviver com a natureza e com pessoas de idade e origem étnica e cultural diversificadas. Assim ele enfatizava os aspectos lúdicos dessas atividades, entendidos como elementos integrantes da cultura, presente nas manifestações estéticas e na tradição popular, macunaímicamente.

Uma das funções da instrutora, a profissional que acompanhava as atividades das crianças nesses espaços, era observar a criança e estudá-la nos seus aspectos higiênico, psicológico e social. Muitos desses estudos foram publicados na Revista do Arquivo Municipal da cidade de São Paulo, RAM, acompanhados pelos pesquisadores e professores da Escola de Sociologia e Política recém-inaugurada, o que denota uma preocupação com os aspectos científicos do fazer dessas profissionais. Elas também deveriam brincar com as crianças, preservando as brincadeiras tradicionais e não deveriam “lhes perturbar ou ameaçar sua liberdade e espontaneidade”; deveriam cuidar do espaço físico e garantir que não houvesse “moralização” das manifestações folclóricas. (Regimento Interno dos Parques Infantis, apud Faria, 1999).

Sempre um artista gestor, nosso personagem tinha um interesse especial pelas manifestações artísticas das ou em relação às crianças, para o que dedicaria vários estudos, sobre as pinturas e os desenhos5 sobre a relação entre elas e a música.

A criança é essencialmente um ser sensível à procura de expressão. Não possui ainda a inteligência abstraideira completamente formada. A inteligência dela não prevalece e muito menos não alumbra a totalidade da vida sensível. Por isso ela é muito mais expressivamente total que o adulto. Diante duma dor: chora – o que é muito mais expressivo do que abstrair: “eu estou sofrendo”. A criança utiliza-se indiferentemente de todos os meios de expressão artística. Emprega a palavra, as batidas do ritmo, cantarola, desenha. Dirão que as tendências dela ainda não se afirmaram. Sei. Mas é essa mesma vagueza de tendências que permite para ela ser mais total. E aliás as tais “tendências” muitas vezes provêm da nossa inteligência exclusivamente (Andrade, 1929, p. 82)

Os Parques Infantis faziam parte do projeto municipal de urbanização da cidade, junto com os demais equipamentos atendendo à Constituição da época que exigia a utilização de 10% do orçamento da prefeitura com os sistemas educativos. Por ser um tempo educativo complementar, para além da escola, a ênfase era posta na ludicidade, enquanto os objetivos oficiais correntes eram voltados à educação moral, higiênica e estética.

Em discurso feito por ocasião do aniversário da cidade, em 1935, Mário enumera desta maneira as iniciativas da Diretoria de Cultura sob sua gestão:

Não há mais sapo. Nos jardins encontrareis recintos fechados com instrutoras, dentistas, educadoras sanitárias dentro. São os parques infantis onde as crianças proletárias se socializam aprendendo nos brinquedos o cooperativismo e a consciência do homem social. Montado no Anhangabaú vereis um teatro luxuoso que vivia fechado. Mas agora o edifício vibra de vida o dia inteiro. São corais, orquestras, trios, quartetos, são escultores no porão e cenógrafos no sótão enorme. As tradições ressurgem e os costumes do passado. São crianças tartamudeando em torno de uma Nau Catarineta de vime, as melodias que seus pais esqueceram, e nos vieram de novo da Paraíba, do Rio Grande no Norte e do Ceará6. Mais adiante uma discoteca ensaia suas primeiras gravações verdadeiramente científicas do nosso canto popular, funda seu gabinete de fonética experimental, enquanto à sombra dos arquivos uma atividade renovada restaura, traduz, publica manuscritos preciosos. Feito um polvo, as pesquisas sociais tudo abarcam com uma audácia incomparável que permitirá muito em breve à cidade conhecer-se em todas as suas condições, tendências e defeitos. (…) (In Revista do Arquivo Municipal, registro radiofônico feito em A Hora do Brasil, em 25 de janeiro de 1935)
Crianças brincando em um dos Parques Infantil

Podemos perceber, pela paixão com que ele faz o balanço de suas ações, ao descrever esse “polvo”, que estendia seus braços nas mais variadas direções com uma multiplicidade de interferências na vida da cidade, como se delineava seu projeto de construção de um pertencimento que agregasse a variedade das manifestações de nosso povo, projeto que vislumbrava uma educação engajada nas questões nacionais e que, a partir delas, apostava em mudanças na sociedade brasileira.

Intelectual multifacetado,“300, 350”, Mário de Andrade emprestou sua inquietude, sua criatividade e curiosidade para que os/as paulistanos/as pudessem vivenciar uma experiência educativa que permanece singular na história da cidade e do país tendo especial destaque para com as crianças.

Ana Lúcia Goulart de Faria
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas- Unicamp, membro do grupo gestor do Fórum Paulista de Educação Infantil de São Paulo – Fpei

Notas:
1. Macunaíma, o herói sem caráter”, é o título da considerada obra-prima da literatura brasileira escrita por Mário de Andrade. Macunaímica refere-se a uma pedagogia brasileira não colonizada, como o herói Macunaíma.
2. Al referirse al Folclor, Mário de Andrade delimita el concepto con el que trabaja, distinguiendo que una “plaga”, que daña, el Folclor, que proviene del hecho de que “El Folclor en Brasil aún no es verdaderamente concebido como un proceso de conocimiento. En la mayoría de sus manifestaciones, es más bien una forma de placer burgués (lecturas agradables, audiciones de pasatiempo) que consiste en aprovechar exclusivamente las “artes” populares, en lo que pueden presentar bellamente a las clases altas. (Andrade 1949, apud Faria, 1999 p. 68).
3. Traducción aproximada del poema Eu sou trezentos de Mario Andrade al español. Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,/ As sensações renascem de si mesmas sem repouso,/ Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!/ si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!/ Abraço no meu leito as milhores palavras,/ E os suspiros que dou são violinos alheios;/ Eu piso a terra como quem descobre a furto/ Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!/ Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,/ mas um dia afinal eu toparei comigo…/ Tenhamos paciência, andorinhas curtas,/ Só o esquecimento é que condensa,/ E então minha alma servirá de abrigo. (In. Andrade, M. Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 221.)
4. El Movimiento Antropofágico escrito por Oswald de Andrade, al mismo tiempo que el Manifiesto Surrealista francés, es un documento que, por primera vez en el hemisferio sur, critica el pensamiento colonial.
5. “El ejercicio de pereza que canté en Macunaíma es una de mis mayores preocupaciones”, dijo Mário de Andrade. Para él, el arte nace de la ociosidad, es hijo de la pereza, deforma la naturaleza. Según él, el arte nació “de un bostezo sublime, como el sentimiento de belleza debe haber surgido de una ociosa contemplación de la naturaleza.” Al respecto, viene bien el comentario de una ex maestra de uno de los Parques Infantiles: “Había un tiempo para descansar y, cuando hacía buen día, se acostaban en el pasto, a la sombra. El descanso era lo que más les gustaba.” (Revista Escuela Municipal, apud Faria, 1999. p. 81)
6. Sobre este tema, véase la tesis doctoral de Márcia Gobbi. “Dibujos de antaño, dibujos de ahora: los dibujos de niños pequeños en la colección Mário de Andrade”, defendida en 2004 y publicada en un libro en 2011, con el mismo título, por Annablume.
7. Provincias del norte de Brasil

Referencias:
• Faria, Ana Lúcia Goulart de. Educação pré-escolar e cultura: para uma pedagogia da educação infantil, Cortez Editora e Editora da Unicamp, SP: 1999.
• Faria, Ana Lúcia Goulart de. A contribuição dos parques infantis de Mário de Andrade para a construção de uma pedagogia da educação infantil. Educação & Sociedade [online]. 1999, v. 20, n. 69 [Acessado 3 Setembro 2022] , pp. 60-91. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-73301999000400004>. Epub 04 Out 2000. ISSN 1678-4626. https://doi.org/10.1590/S0101-73301999000400004.
• Faria, Ana Lúcia Goulart de. Origens da Rede Pública Municipal de Educação Infantil na cidade de São Paulo: O Departamento de Cultura e os Parques Infantis de Mário de Andrade (1935-1938). Pro-posições. 1995, v. 6, n. 2[17] pp. 34-45 . [Acessado 3 setembro 2022]. Disponível em
https:// periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8644268/11694
• Andrade, Mario. Poesias Completas. RJ: Nova Fronteira, 2013.
• Andrade, Mario. Folclore. In: BORBA DE MORAES, Rubens. Manual bibliográfico de estudos brasileiros Rio de Janeiro: Souza, 1949.
• DEPARTAMENTO DE CULTURA. Divisão de ensino e recreio. Legislação dos parques infantis, 1936.
•_______. Divisão de ensino e recreio. Regimento interno dos parques infantis. s/d. (relacionado ao ato 1.146 de 4/7/1937).
• Revista ESCOLA MUNICIPAL. 50 anos de pré-escola municipal. 18, nº 13, 1985.

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