Conselho editorial da revista infância Latinoamericana da Argentina.
(Patricia Redondo, Alejandra Bianciotti, Daniela Sposato, Luciano Roussy)
Marcia Ramos é militante do Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil, educadora e pesquisadora das infâncias.
Olá Márcia, conte-nos sobre sua história de militância no MST e o que o MST representa no Brasil e na América Latina?
Minha família desde o início lutou pela terra através do trabalho, de um lugar para morar. Sou filha de uma família camponesa. Sou do interior de São Paulo, de família pequena e quando meus pais procuravam um lugar para trabalhar na terra, ocorre a primeira ocupação de terra em 1984. Nessa época nasceu o MST junto com um movimento de luta pela terra, juntamente com a igreja e os sindicatos, com grande mobilização de famílias que viviam no campo, organizaram a primeira ocupação das terras. Foi em 1986 que minha família participou da terceira ocupação de terras do movimento.
Eu tinha nessa época 12 anos, o meu pai sempre trabalhou sob jugo de um patrão para sobreviver, em regime de parceria. A ocupação nos permitiu ter espaço de comunidade, de coletividade, de possibilidade de escola, de saúde, de organização social e de trabalho. Pelo contrário, no campo a vida é solitária e afeta a participação de meninas, meninos e mulheres, na educação, na organização social e favorece a violência e o patriarcado.
Estar no MST foi muito importante para minha infância e formação. Para além das dificuldades de acesso, a comunidade permite um espaço de partilha para encontrar soluções coletivas, vivendo em comunidade funciona como uma estrutura, uma riqueza para qualquer outro trabalho. Parte disso é a essência da minha formação como educadora popular.
Assumo-me como educadora da infância e pesquisadora, entendo que a infância é política, um sujeito político, é histórica e coletiva.
Sabemos da sua preocupação com as infâncias camponesas sem terra e com o congresso que realizaram. Como o MST incorpora a participação das crianças, qual o caminho percorrido e como surgiu o congresso?
Na década de 90, nossa casa era a casa das meninas e dos meninos do assentamento, que dava vida à comunidade. O processo foi longo, para pensar nas meninas e nos meninos na luta pela terra no Brasil. Quando olhamos para trás na história, antes do MST, vemos um tempo de violência total para as nossas crianças, de silenciamento, de exploração laboral, exercida até pelas famílias, pelos proprietários de terras e até pelo próprio Estado brasileiro.
“Historicamente estamos construindo um processo com as crianças, não para as crianças, mas com elas”
As meninas e os meninos do MST, na luta pela terra, têm uma centralidade diferente. Eu diria que a educação modifica a forma como um movimento popular como o MST vê a sociedade a partir da perspectiva de meninas e meninos. Por que? Porque não só realizamos o maior encontro nacional de crianças camponesas do Brasil, mas também porque historicamente estamos construindo um processo com as crianças, não para as crianças, mas com elas.
A ocupação da terra também consolida a posição da escola dentro dos acampamentos, da comunidade, porque a luta é para fazer uma escola, algo que nos foi negado historicamente, desde a colonização e os próprios movimentos do capitalismo. O direito de acesso à educação às populações rurais foi historicamente negado, porque conhecimento é poder, conhecimento muda as sociedades. Assim o campo brasileiro ficou praticamente excluído do direito ao conhecimento, do acesso à escola e às universidades.
“O direito de acesso à educação às populações rurais foi historicamente negado, porque conhecimento é poder, conhecimento muda as sociedades”
É para lá que o MST olha e para meninas e meninos, ele não invisibiliza nem violenta. O direito negado pelo Estado brasileiro é restaurado pelo movimento. Lutamos pela escola pública porque é uma luta da classe trabalhadora. A luta pelo acesso à escola foi o primeiro movimento de luta por uma escola com professores/as da comunidade. A educação deve servir ao necessário à vida, a um projeto político pedagógico, a uma comunidade educativa, o mercantilismo também disputa o vocabulário, o cliente, a oferta. Há uma visão empresarial da educação que busca comercializá-la, não só no Brasil, mas em toda a América Latina. Então, a luta é permanente, os/as professores/as são criminalizados/as e perseguidos/as. A educação pública está em disputa.
“Lutamos pela escola pública porque é uma luta da classe trabalhadora. A luta pelo acesso à escola foi o primeiro movimento de luta por uma escola com professores/as da comunidade”
Márcia, você nos contou que o movimento também desenvolveu instrumentos próprios para abordar a questão da educação infantil. Como é isso?
Quando surge o MST, surge o debate pela escola. Porque a escola formal discriminava meninas e meninos camponeses e é por estas razões que pouco a pouco o movimento argumenta que este tipo de educação não era útil para as pessoas. Assim, já na década de 90 foram discutidas duas dimensões centrais do projeto educativo do MST. Por um lado, a pedagogia freireana dos oprimidos de Paulo Freire e a construção da revolução socialista. Esses dois aspectos fazem parte do projeto pedagógico da escola do MST como instrumento político.
Outro instrumento que surgiu em 1994 foram as mobilizações infantis. As crianças são um movimento para conceber, junto com os educadores, a luta perante a Secretaria de Educação dos Estados: que escola queremos. Desde 1994, os 24 estados brasileiros onde o MST está instalado estão mobilizados com petições às Secretarias de Educação para exigir o direito de ter escolas nas comunidades, num projeto político-pedagógico vinculado às necessidades específicas de cada estado. É uma novidade na formação do movimento camponês nesta perspectiva das mobilizações infantis. A mobilização infantil permite outra perspectiva da infância no Brasil, compreendendo meninas e meninos como sujeitos políticos, culturais e históricos não apenas no movimento camponês, mas em outros espaços e organizações no Brasil.
“La pedagogía freireana de los oprimidos de Paulo Freire y la construcción de la revolución socialista. Esas dos vertientes forman parte del proyecto pedagógico de la escuela del MST como instrumento político”
O terceiro instrumento é a ciranda infantil. É um espaço infantil que começou para os crianças pequenas e hoje abrange até aos 12 anos. Essa luta começa com a participação das mulheres do MST. Não é possível falar de infância no MST sem reunir a participação das mulheres. Porque para participar tinham que trazer as filhas e os filhos, é uma condição das mulheres camponesas e se não fosse garantido um espaço para meninas e meninos, a participação das mulheres não era possível. Isto gerou muitos conflitos internos decorrentes da luta das mulheres para poder participar, mas também de meninas e meninos. Como já existiam mobilizações escolares e infantis, nos perguntamos: por que não organizar algo para os crianças pequenas?
Isso surgiu em um curso de treinamento em 1996 discussão e em 1997, numa grande reunião de educadores e educadores de infância em Brasília organizamos o ciranda dos primeiros filhos. Esta foi uma grande jogada porque a participação das mulheres e dos pais nas Atividades. A ciranda não é só do MST, mas de todos as organizações sociais, um espaço para crianças, para que as mulheres possam participar.
Contudo, dizemos que a ciranda é um espaço alternativo, porque não faz parte de uma política pública do Estado em que há direitos violados, das nossas infâncias, mas também dos trabalhadores da educação.
Bom, justamente em 2018 chegamos a um grande encontro de meninas e meninos camponeses com 1.200 crianças e mais de 300 educadores/as de todo o Brasil, com dois anos de preparação para um encontro nacional.
O desafio era que meninas e meninos fizessem parte da construção do encontro, os 24 estados tiveram que participar, sem financiamento, para pensar em um projeto de sociedade. Que relação este projeto tem com o movimento? Primeiro, faz parte de um projeto popular de reforma agrária que o MST defende no Brasil.
Este projeto não é um projeto só para meninas e meninos, está vinculado ao nosso movimento social popular que tem como princípio a participação, a luta social, a coletividade, a história, a agroecologia, que rompe com a propriedade privada e a concentração de latifúndios. São muitas questões que estão interligadas com o projeto de infância, não estão separadas.
A organização do encontro levou 2 anos de construção e a primeira coisa foi pensar na metodologia que tem como centralidade a participação das crianças, o que não é fácil. Falamos de participação infantil não para eles, mas com eles. As meninas e os meninos estiveram presentes em pequenos comitês que discutiram os temas apontados por elas/eles próprios, bem como as oficinas, incluindo o cardápio alimentar do encontro. O processo foi muito valioso, talvez mais do que a reunião em si, cada debate, conversa, organização logística e burocracia estatal que antecedeu a reunião foi muito gratificante.
“Não é um projeto só para meninas e meninos, está vinculado ao nosso movimento social popular que tem como princípio a participação, a luta social, a coletividade”
O processo de construção do encontro deixou uma marca, experiências do teatro dos oprimidos sobre o trabalho, a violência de gênero, discussões em torno do ser humano e da desigualdade.
As crianças valorizam as amizades, a oprtunidade de conhecer a realidade de outras meninas e meninos do resto do Brasil, bem como a importância das mais de 50 oficinas com artistas e voluntários num contexto eleitoral muito complexo onde também foi necessário garantir a segurança dos meninas e meninos na reunião.
Antes meninas e meninos eram invisibilizados, hoje estão presentes, fazem parte do processo de construção e esse é o nosso equilíbrio histórico. Pensando na infância e no direito à educação no campo, meninas e meninos necessitam de espaços coletivos de suas organizações, pautados na luta para fazerem parte, para estarem presentes. Isso mudará a nossa forma organizacional, meninas e meninos estão presentes, não apenas no futuro. Meninas e meninos estão presentes, mas no futuro serão trabalhadoras e trabalhadores, por isso devem ser participantes para serem adultos transformadores, para fazerem parte da realidade histórica.
“Antes las niñas y los niños eran invisibilizados, hoy están presentes, son parte del proceso de construcción y ese es nuestro balance histórico”
Para a América Latina não é possível pensar na infância sem pensar no trabalho digno para as suas famílias, sem pensar na produção agrícola agroecológica para pensar no direito à saúde. Não podemos ser a região mais pobre do mundo por ser a região que mais explora e violenta à crianças e mulheres. Não se trata de igualar, mas de garantir os direitos. A ausência da escola é a ausência da comunidade, por isso necessitamos organizar a comunidade. Pensando coletivamente, universidades, organizações sociais, temos que pensar na saída, porque a saída é coletiva e é possível com as infâncias da América Latina.
“Não se trata de igualar, mas de garantir os direitos. A ausência da escola é a ausência da comunidade”
Conselho editorial da revista infância Latinoamericana da Argentina.
(Patricia Redondo, Alejandra Bianciotti, Daniela Sposato, Luciano Roussy)