Cultura e expressão. A pedagogia do desafio ou, como não criar crianças “tolas”

Crianças ajudando a manter uma plantaçao de mandioca Parauá , 2012.


Chantal Medaets

Às margens do rio Tapajós, no estado do Pará, vivem povos indígenas e ribeirinhos em pequenas comunidades distribuídas ao longo desse que é um dos principais afluentes do rio Amazonas. Conheci diversas dessas comunidades ao trabalhar como professora primária na região no início dos anos 2000 e voltei para fazer minha tese de doutorado, em Antropologia, sobre a maneira como educam as crianças. Para alguém formado e atuando na educação escolar, como eu naquela época, havia mesmo algo de insólito na modalidade de transmissão e aprendizagem local, que instigava a curiosidade. A “pedagogia nativa”, ou seja, a forma como as pessoas das gerações mais velhas garantem a transmissão de habilidades e conhecimentos que consideram importantes para seu modo de vida, como a pesca, a caça, o trabalho nas roças de mandioca e a construção de barcos, era – e ainda é – enxuta em apoio aos novatos. Não é comum encorajar, corrigir, explicar, mas sim afastar, excluir as pessoas menos experientes, aquelas que se considera “não garantir” participar de uma determinada atividade de forma competente. De tal forma que se cria um clima de desafio: provar que “garante” é uma condição para participar das atividades e ganhar, com isso, o reconhecimento decorrente de estar nessa posição, ou seja, o reconhecimento de ser considerado um par, alguém que tem competência para realizar atividades que são centrais no cotidiano dessas comunidades.

Nesse contexto, os elogios são mal vistos. E porquê? Porque eles vão na contramão dessa concepção local que aposta na iniciativa de quem aprende, que aposta que cabe ao aprendiz fazer o esforço necessário à aprendizagem. Considera-se que os elogios “estragam” as crianças, deixando-as “tolas”. Vejamos o que isso quer dizer num episódio que evidencia essa concepção.

Além das comunidades do “beiradão”, termo que os moradores usam para se referir às localidades que margeiam o rio, muitas famílias residem também nas cidades da região, em especial na maior delas, Santarém, com mais de 300 mil habitantes. Nem por isso deixam para trás hábitos e todo um modo de vida construído nas comunidades que, pelo contrário, irriga o cotidiano de tantos bairros urbanos da região Norte. Ao lado dessas famílias, vemos também em Santarém muitas pessoas vindas de outras regiões do país, em função de seus trabalhos (funcionários públicos, de ONGs, comerciantes, etc.). Dona Erinalda (67 anos), moradora de Santarém mas nascida na comunidade de Parauá tinha por vizinhos um casal paulistano de classe média: ele procurador federal, ela jornalista trabalhando a distância. E a maneira como esse casal educava sua filha de um ano e meio deixava dona Erinalda perplexa.

Eu conhecia dona Erinalda pois sua irmã era quem me hospedava durante o trabalho de campo na comunidade de Parauá, e algumas vezes a encontrei tanto em Santarém, quanto em Parauá. Além do que podia ouvir dado a proximidade das duas casas, dona Erinalda sabia sobre a vida do casal paulistano e sobre a educação da pequena Ada, filha deles, pelo que lhe contava uma sobrinha sua que trabalhava ali como diarista. A exasperação chegou ao ponto de, num momento de conversa entre vizinhas, dona Erinalda ter interpelado a jovem mãe, criticando sua maneira de educar a filha:

“Sabe, dona menina, não presta não a gente agradar muito uma criança. Eu lhe digo, a senhora não pode fazer, tratar assim a sua filha de elogio o tempo todo. Eu tô lá em casa e eu escuto todo tempo vocês ‘muito bem, Adinha! E ‘que lindo isso, que bonito aquilo’. Mas… a menina vai pensar que ela não precisa nunca fazer um esforço, que tudo que ela faz já tá bom demais!”

Dona Erinalda rememorou essa fala ao conversar comigo dias depois sobre o assunto, e concluiu: “A criança que acha que tudo que ela faz é bonito é uma criança tola”.

“Asegurarse” y no ser “tontos”

No Tapajós, o termo “tolo” é utilizado num sentido um pouco diferente daquele de suas primeiras acepções no dicionário (pessoa idiota, burra), embora permaneça o sentido pejorativo de uma pessoa desajustada socialmente. Ele costuma designar crianças que fazem muitas bobagens (“malinagens”, “tolices”), crianças desobedientes, e se aplica também a qualquer pessoa (criança ou adulto) considerada arrogante, cheia de si. “Ah, mas ele é muito tolo aquele Gederson.

Pra tudo ele diz que tem uma resposta”, comenta uma senhora falando de seu genro. Quando uma mãe fala carinhosamente ou brinca com seu bebê em público, num barco de linha por exemplo, não é raro ouvir alguma outra mulher que se encontre próxima dizer em tom de brincadeira: “Mas ele vai ficar muito tolo, esse menino…”. Nesses momentos, o tom é de brincadeira, mas basta a atitude ser mais recorrente, ou a criança maior, para que a crítica mude de tom. Uma educação pontuada de elogios constantes teria por consequência produzir uma pessoa “tola”.

Na mesma direção, um estudante indígena da região do Tapajós que hoje cursa Unicamp, contou-me que sua mãe, que a certa altura da vida adquiriu boas condições econômicas com sua loja de artesanato, nunca deixou seus filhos colocarem espelhos na sua casa, para evitar que eles ficassem se olhando e “se achando bonitos”. “Mamãe nunca nos fez um elogio”, lembrou o estudante, “era um outro jeito, não tinha espaço pra essas coisas”.

É interessante notar que o próprio termo “garantir”, que tem a princípio tem um sentido bastante positivo na região do Baixo Tapajós, pode ganhar uma conotação negativa que o aproxima da de “tolo”; isso acontece quando a pessoa se torna “muito garantida”. A irmã de dona Erinalda, em Parauá, costumava dizer de sua filha de 10 anos, em tom de reprovação, que ela era “já muito garantidinha”. Porque você diz isso? Perguntei um dia. “Mas…”, ela me respondeu, “tudo ela se mete a fazer, tudo acha que sabe”. Se o termo “tolo” tem uma conotação somente negativa, o termo “garantido” é ambíguo. “Garantir” numa determinada atividade é fonte de reconhecimento e prestígio. Mas deve-se tomar cuidado com o excesso, e a pessoa que “garante demais” corre o risco de se aproximar de um “tolo”, já que pode começar a considerar, rápido demais, que já sabe fazer de tudo. É uma questão de gradação: deve-se “garantir” sem ser “garantido” e, menos ainda, “tolo”.

Como em muitos contextos camponeses e indígenas, no Tapajós as crianças não são separadas e participam de boa parte das atividades conduzidas pelos adultos. Os adultos reconhecem que existe uma dimensão educativa na participação das crianças, que é indissociável da “ajuda” que elas oferecem ao desenvolvimento da atividade. Justamente por essa associação entre ajuda e caráter educativo, no Tapajós a participação das crianças não é exatamente estimulada. As pessoas que estão na posição de aprendizes se veem muitas vezes afastadas da realização da atividade, e são colocadas no lugar de observadores – isso quando a sua presença nessa condição não atrapalha o desenrolar da atividade. A participação é, portanto, ao mesmo tempo esperada e valorizada (“esses filhos são bons demais, ajudam em tudo”, dirão muitos pais) e sujeita a condições (“eles não vêm, porque só, a pescaria rende mais”, me explica o pai de cinco meninos, com idades entre dois e onze anos, que não os leva para suas pescarias). Para poder ajudar, não basta ter boas intenções, é preciso “garantir”. “Garantir” sem se tornar “muito garantido”, ou seja, sabendo que nada deve ser considerado fácil, ou ganho de antemão.

Em direção diametralmente oposta aos jovens de classe média a quem se refere a jornalista Eliane Brum, que pensam “merecer” felicidade e conquistas sem necessariamente fazer esforço no sentido de produzi-las, no Tapajós, a modalidade de aprendizagem produz aprendizes que não são “tolos” (no sentido local), que sabem que devem tomar a iniciativa, que devem “fazer por merecer”, no sentido de produzir o esforço necessário para aprender. Essa maneira de educar, que também foi observada, com algumas variações, em outros grupos indígenas (ver, por exemplo, Cohn, 2005; Tassinari, 2015), pode parecer paradoxal à primeira vista, quase uma anti-pedagogia, dado o pouco apoio que as pessoas mais experientes dão aos aprendizes (e se considerarmos pedagogia como um conjunto de estratégias que visam apoiar a aprendizagem). Mas ela tem por consequência forjar corpos ativos, sentidos aguçados e uma disposição, entre os aprendizes, para tomar a frente de seus próprios processos de aprendizagem.

Dra. chantal Medaets
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Coordenadora do Centro de Antropologia de Processos Educativos – Ceape / ceape.fe.unicamp.br/
Coordenadora da Comissão Assessora para a Inclusão Acadêmica e Participação dos Povos Indígenas – CAIAPI/ Unicamp.
Livro em acesso livre:: https://books.scielo.org/id/pz4r6

NOTAS
1. Uma revisão bibliográfica sobre esse tema pode ser lida em Medaets, C. Tu Garante? Aprendizagem Às Margens Do Tapajós. Entremeios. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2020, capitulo 4. Disponível em: https://books.scielo.org/id/pz4r6.
2. Em artigo na Revista Época, disponível em: https://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT247981-15230-247981-3934,00.html
3.Tassinari, Antonella. “Produzindo Corpos Ativos: A Aprendizagem de Crianças Indígenas e Agricultoras Através Da Participação Nas Atividades Produtivas Familiares.” Horizontes Antropológicos 21, no. 44 (2015): 141–72. Cohn, Clarice. “Educação escolar indígena: para uma discussão de cultura, criança e cidadania ativa.” Perspectiva 23, no. 2 (2005): 485–515.

Relacionats

Subscriu-te al nostre butlletí!
Vols rebre informació sobre totes les novetats formatives i activitats de l'Associació?
Subscriu-t'hi!

Escoles/Universitats amigues
Ets un centre educatiu que vol participar i cooperar amb equips de mestres compromesos amb la millora de l’educació a Catalunya?
Associa't i forma part de la xarxa!

Subscriu-te al nostre butlletí!

Vols rebre informació sobre totes les novetats formatives i activitats de l'Associació?
Subscriu-t'hi!

Escoles/Universitats amigues

Ets un centre educatiu que vol participar i cooperar amb equips de mestres compromesos amb la millora de l’educació a Catalunya?
Associa't i forma part de la xarxa!