Experiências. Três experiências, três olhares, três histórias

Pensar na diversidade é pensar na sua visibilidade, condição essencial para a sua existência e para pavimentar o caminho até lá. É abrir a porta para a complexidade. É dar ar ao verbo vida. Nascem então questões sobre o sentido do já dado, que problematizam a existência e o cotidiano, tornando-se corpo a partir de uma educação dialógica, inclusiva, desejante e ávida por construir aprendizagens interessantes sobre o primeiro andaime: a identidade e a singularidade de cada ser. Três histórias, a partir de três perspectivas, partilham a sua experiência de generosidade e amorosidade. Três histórias são realçadas para nos mover a partir da ética e da estética da vida cotidiana, do poder da simplicidade. Três histórias que falam da realidade indescritível sem tentar encapsulá-la, porque apenas buscam o deixar-se atravessar por elas e acompanhar o seu ritmo imprevisível.

1. Muitas maneiras de fazer tudo (Maria Schelotto Varela)

Sobre o que devemos conversar com meninos e meninas durante a primeira infância? O que é importante para eles e elas saberem? Que níveis de complexidade eles e elas conseguem acessar? Como cuidamos deles/delas? Como respondemos às suas perguntas? Como explicamos as injustiças que observam, os silêncios dos quais não temos consciência, a desconexão do mundo binário do qual ainda nos sentimos parte? O que nomeamos? Como nomeamos? O que dispomos como possibilidade e o que deixamos de fora?

É difícil ver o que o nunca nos mostraram. Poder fazer perguntas que questionem nossas construções mais básicas sobre o que é o mundo, o que são as relações humanas, o que nos ensinaram sobre as ciências biológicas naquele livro em que se viam espermatozoides musculares competindo para colonizar pacientemente, sedutoramente, o óvulo, a chegada do vencedor.

A verdade é que quando entramos no campo da sexualidade nos esforçamos para encontrar respostas rápidas, concretas, que não causem desconforto nem a nós mesmos/as nem às outras pessoas. Nós o reduzimos do ponto de vista psicológico, emocional ou biológico. Generalizamos tendendo à norma. Nós escapamos com sucesso evitando o campo minado. Ou assim pensamos, porque então a magia acontece. Um grupo de meninos e meninas de 3, 4 e 5 anos pensa na sua própria história e nas histórias de outras pessoas que conhece. A história não corresponde. Não é linear. Não pode ser sustentada e varia dependendo de cada caso. Há partes da história que estão faltando. Não é compreendido. Há pessoas que ficam de fora. A complexidade do campo da sexualidade, se olharmos de uma perspectiva abrangente, questiona e sentimos que aos poucos começamos a ser arrastados por uma maré caótica cheia de correntes alternadas. Tentamos lutar contra a força da água e continuar nadando em linha reta, mas no fundo sabemos que não temos mais essa possibilidade. Deixamo-nos levar e entramos no mesmo barco. Estamos prontos para aproveitar a viagem cujo destino exato não sabemos. Mas uma coisa temos certeza: esse caos faz mais sentido. Porque todos e todas nós entramos nesta jornada.

Dentro da minha prática profissional acompanho, já há algum tempo, como professora, faixas etárias heterogêneas entre os 3 e os 5 anos. Realizamos a construção do caminho de aprendizagem de forma cooperativa. Encontramos interesses comuns por meio de propostas lúdicas criativas em que as áreas de expressão artística articulam as diferentes jornadas. Nos conhecemos através da arte, do movimento corporal, da expressão musical, da narrativa e literatura e da dramatização. É a partir dessas áreas que também abordamos os objetos do conhecimento. Temas ligados ao campo da sexualidade aparecem, como não poderia deixar de ser, de forma constante e cotidiana. Nos espaços de higiene corporal, nas consignas ligadas à problematização das construções e dos estereótipos de gênero, nas formas como os nomeamos. No entanto, posso identificar claramente dois anos em que estive especialmente interessada em aprofundar. Dois anos em que praticamente todas as aprendizagens se situaram na órbita de um tema que interessava ao grupo e que entrelaçava a história de cada um dos meninos e meninas: o nascimento.

Desenho de Celesta (5) Silhueta do corpo sexua
Útero com esperma e óvulos

Em 2020, em contexto de pandemia, uma borboleta nos mandava cartas de uma casa para outra e em cada uma delas contava características de vida. Descobrimos suas transformações e suas mudanças. Aprendemos também que ela nasce de um ovo e depois dentro da pupa acaba virando uma borboleta. No regresso à presença surgiu a inevitável questão: E como nascemos? Como primeiro passo decidimos aprender mais sobre o nosso próprio corpo. Desenhamos nossas silhuetas e nomeamos vulva, pênis, ânus, testículos, braços, pernas, cabeça, orelhas, nariz e boca. Observamos também imagens do corpo por dentro em que o útero nos chamou a atenção. Aí começamos a crescer! Conhecemos e nomeamos alguns novos conceitos como óvulo, oviduto e espermatozoides. Aprendemos que não crescemos na barriga, mas no útero e nos perguntamos por que, se há tanto tempo deram nome aos nossos pulmões, nunca deram nome ao útero. Chegamos a uma conclusão: para um/a\ bebê crescer são necessários um óvulo e um espermatozoide. Os primeiros são encontrados dentro de corpos com vulvas e os segundos, dentro de corpos com pênis. Brincamos de estar dentro do útero, que é tão quente que não quero sair. Construímos óvulos e espermatozoides com resíduos que fizemos viajar do ovário para chegar aos ovidutos. Começamos a entender um pouco de onde vinham as coisas até Espere! E você, Olívia? Do útero de qual de tuas mamães você nasceu? Como elas conseguiram o espermatozoide? As dúvidas multiplicaram-se e foi necessário recorrer a novas informações. Felizmente, as mães de Olivia nos enviaram um livro de histórias em que médicos e médicas ajudavam famílias necessitadas. Cresci no útero da mamãe Dani e no coração da mamãe Mima. Entendemos que havia pessoas que doavam seu espermatozoide para que outras pudessem ser mães. E achamos incrível. Também recebemos um vídeo de uma amiga pediatra que explicava como acontecia um parto com maquetes onde apareciam a placenta e o cordão umbilical. Achamos que era tão importante que criámos algumas marionetes para partilhar com o resto dos grupos do centro educativo. O enigma foi se desvendando e entendemos que existem muitas formas de nascer, como também existem muitos tipos de famílias, como também existem muitos tipos de cor dos olhos e muitos tipos de formas de ser. Faz sentido que existam muitas maneiras de fazer tudo.


Valentin (3) naciendo del útero construido por las familias

Já em 2023 o interesse se repetiu com um grupo diferente de meninos e meninas. Os animais foram foco de pesquisa durante os dias de encontro e brincadeira. Pinguins, tartarugas terrestres, cangurus, cavalos-marinhos, baleias azuis pisavam pela sala e as perguntas não demoraram a aparecer: Como nascem esses animais? Descobrimos as características de cada espécie que vinculamos ao ecossistema em que estavam inseridas. Aprendemos que alguns nascem de óvulos e precisam de muitos cuidados. Outros nascem do útero e outros são cuidados durante o primeiro período de vida em uma bolsa. Ficamos surpresos/as com suas particularidades. Encontramos muitas semelhanças e algumas diferenças com os seres humanos porque é claro que também somos animais! Mamães e papais, em uma reunião com as famílias, construíram para nós, como uma surpresa, dentro da sala um grande útero onde pudemos entrar e sentir o calor daquela época. Viajamos pelo canal vaginal e sentimos, de alguma forma, que tínhamos a possibilidade de nascer de novo, uma, duas, três, mil vezes mais. Desenhamos um grande útero no chão com giz e nossos corpos viajaram, transformando-se em espermatozoides e óvulos. Descobrimos que a força e a colaboração de muitos espermatozoides são necessários para que um, junto com o óvulo, inicie o processo de fertilização. Reconhecemos e nomeamos nosso corpo. Desenhamos nossas silhuetas uma sobre a outra e nem duas coincidiram. Que grande diversidade corporal! Descobrimos que nascemos de formas diferentes, uns nasceram da barriga e outros da vagina. Com atenção, Clara (4 anos), enquanto fazíamos todas essas descobertas em grupo, observa Rafael, da turma de 1 ano, chegando todos os dias de mãos dadas com suas duas mães. Ela afirma categoricamente em uma rodada no início da tarde: Podemos mandar uma carta para elas perguntando como fizeram para que ele nascesse dos dois úteros! Já que não há uma ponte entre eles. Será que colaram com super bond? Escrevemos a correspondência e Felipe (5 anos) acrescenta vamos perguntar também onde conseguiram os espermatozoides. Poucos dias depois nos enviaram uma carta na qual respondiam claramente ao que havíamos perguntado: Rafael havia crescido no útero de uma delas.

Sua outra mãe acompanhou seu crescimento do outro lado da pele. Havia também um lugar onde você poderia ir tanto para doar óvulos e espermatozoides quanto para recebê-los, claro! Assim, todas as famílias podem se tornar mães e pais, se quiserem.

Antes, antes, aaaaaantes não se sabia disse Simón (4 anos). Não sei por que não se podia. Você não podia porque não podia. Talvez eles não soubessem que era possível. Antes, antes, antes, podíamos nadar pelo mar em linha reta sem perceber. Mas um dia, as correntes tornaram-se mais fortes porque mais ventos se amimaram a soprar. Os sons das ondas eram mais altos porque mais vozes ousavam gritar. Nossos corpos sentiram o impacto do frio do mar e quase não embarcamos na aventura. Mas aos poucos o corpo começou a se animar, a se temperar, a se fazer novas perguntas, a pedir ajuda quando a incerteza se torna pesada, a nadar de mãos dadas. Pudemos perceber que muitos de nós queremos uma infância livre, que possa pintar suas vidas com as cores que desejarem. É onde estamos. E você sabe por quê? Porque há um amanhecer aparecendo e seria bom que você não perdesse, que a gente não perdesse (Shock, 2016).

Referencias Bibliográficas:
Shock, S. (2016) Crianzas. Muchas nueces

2. A voz das mães
(Daniela Goffi e Adelina Perdomo)

Queremos começar nos apresentando. Somos uma família lesbomaterna (homoparental) composta por duas mães e nossa filha que hoje tem 7 anos. Olivia tem duas mães, não tem pai e foi concebida por inseminação com doador anônimo. Informações que nossa filha sempre teve.

Como família, sabemos que somos uma família diferente, diversa e explicitamos essa diferença com orgulho em cada um dos espaços em que participamos. Neste momento parece-nos importante nomear Rubén e Mario (pais de Camilo) que com as suas palavras “Ser Visível Torna-nos Invencíveis” ajudaram-nos a construir esta forma de nos apresentarmos que gera confiança e segurança. Constituem a primeira família homoparental da América Latina. Definir a escolha do centro educacional onde nossa filha iria frequentar na primeira infância foi uma tarefa que exigiu muito tempo e dedicação. Tínhamos que encontrar um lugar que proporcionasse a Olivia e a nós confiança e segurança, bem como aprendizagens educacionais.

Na nossa busca falamos com vários membros da nossa comunidade: familiares, amigos/as, outras famílias lesbomaternas; e foi assim que decidimos solicitar uma entrevista no Centro de Educação Infantil Araity.

Naquela reunião, onde uma das diretoras nos recebeu, a primeira coisa que nos aconteceu foi sentir a sensação de sermos muito bem-vindas. Percebemos alegria pela possibilidade de ingresso de uma menina com duas mães; uma família como a nossa.

É importante ressaltar que nossa filha ingressou em Araity, acabando de completar um ano, isso significa que a entrevista ocorreu vários meses antes porque não sabíamos quanto tempo levaríamos para encontrar o local adequado às nossas necessidades. Na entrevista foi-nos explicada a alegria de nos receber e a informação sincera e honesta de não termos experiência a nível institucional de trabalho com famílias lesbomaternas/homoparentais. Elas nos convidaram para construirmos juntas essa experiência e foi assim que, com um ano e um dia de vida, fraldas e pouquíssimo cabelo. Olivia iniciou sua jornada por Araity. Ela se formou cinco anos depois, cheia de aprendizagens e amor por SEU jardim.

Quando começamos a pensar no que compartilhar neste texto, perguntamos a Oli como ela se sentia no jardim sendo uma menina com duas mães. Sua resposta foi: “é o melhor jardim do mundo”.

O que acreditamos confirma que tomamos a decisão certa e que o desafio que assumimos em conjunto com a diretora no início foi mais do que cumprido.

Tantos anos depois daquele primeiro encontro e à luz da experiência em diferentes espaços institucionais de todos os tipos, destacamos a importância de assumir que todas/os estamos construindo algo novo. Embora sempre tenham existido famílias homoparentais e lesbomaternas, não faz muito tempo que conseguimos ser visíveis e legítimas em nosso país. A nossa filha nasceu no âmbito da lei do casamento igualitário e da lei da reprodução assistida, o que lhe permitiu ser carregada por uma das mães e ser filha legítima de ambas.

Sentimos a construção como um todo durante os cinco anos com toda a comunidade educativa: educadores/as, trabalhadores/as, famílias, meninos e meninas. Regressando aos primórdios, lembramo-nos de mostrar aos pais e as mães as características da nossa família, abrindo-nos à realidade e à possibilidade de esclarecer as dúvidas que surgiram para eles/elas e para os diversos membros de suas famílias. Destacamos nesses momentos o olhar atento do ponto de vista institucional, apoiando a integração da nossa família na comunidade educativa.

Dessa época lembramos algumas anedotas que incluem perguntas de meninos e meninas: de que barriga ou vulva nasceu Olivia? Se Olivia tivesse pai, etc. Evocamos também conversas com a comunidade sobre a nossa experiência e a importância de sermos visíveis, ouvidas e acompanhadas. Destacamos também a relevância de não comemorar os “dias da”, mãe, pai, etc. e o dia da família ser comemorado em seu lugar.

Não nos sentimos questionadas pela falta de um pai; à medida que meninos, meninas, famílias e educadores/as cresceram juntos/as, foi algo que se tornou natural com o tempo. Só tivemos que voltar a esse tema quando mudamos de instituição e de fase da vida ao ingressar na escola primária.

À medida que a nossa filha crescia, novas questões surgiram em meninos e meninas como: “como são os diferentes tipos de famílias?”, “como os espermatozoides chegam à barriga?”, “de onde vêm os espermatozoides?” como os espermatozoides são armazenados?” As respostas vieram de nós, de outras famílias e da própria instituição através de diferentes propostas educativas. Desta forma, tanto Olivia como os seus colegas trabalharam (ao nível dos meninos e meninas da primeira infância) temas como: corpo humano, reprodução, reprodução assistida, doador anônimo, diversidade nas famílias, etc.

Um livro central que ajudou a incorporar esses temas foi “We Are Family” da Dra. Elizabeth Ormart (Editorial Molinos de Viento) que foi trabalhado no jardim junto com outros textos e materiais.

Todo este trabalho foi tão transcendente que acreditamos ter contribuído significativamente para que a nossa filha pudesse, com orgulho, compreender a sua gravidez, o seu tipo de família e a figura do doador anônimo.

Outros livros que lembramos de terem sido trabalhados no jardim foram:
– “Mommy, Mama, and Me” (“Mommy, mamãe e eu”) de Leslea Newman – Trycicle Press Editorial
– “Minha família de outro mundo!” (¡“Mi familia de otro mundo!”) de Cecília Blanco – Editorial Uranito.
– “Eu tenho duas mães, e você?” (“Yo tengo dos mamás, ¿y tú?”) de Carmen Lázaro Lopez.
– “De que barriga eu nasci?” (“¿De que barriga nací yo?”) de Virginia del Río – Editorial Carambuco Edições.
– “Amanda e o corpo” (“Amanda y el cuerpo”) de Mariana Gardella e Mariela Califano – Editorial Capital Intelectual.
Como em todas as áreas da vida, construir e pensar em conjunto enriquece, fortalece e permite crescer. A incorporação da diversidade, acreditamos, só pode ser alcançada a partir da visibilidade real das famílias diversas, a partir da palavra falada. Do fato concreto de viver, partilhar e educar, incorporando o diferente, o diverso em todos os gêneros.

3. Educação sexual integral na Primeira Infância: por onde começar?
(Maria Mañana Garcé, Florencia Anzalone Cabrera, Maria Noel Fekete)

É sábado de manhã, os/as participantes estão chegando, há uma rodada de mate e sempre há uma piada sobre como é difícil levantar… Num momento sabemos que a conversa é interrompida, nossos pés ficam descalços e começamos o dia. Nos espera o início do trabalho, que é sempre experiencial. Risos, desconforto, olhares circulam e aos poucos começamos a preparar o corpo. A ludicidade, o movimento e o encontro tornam-se protagonistas. Depois a passagem para a ação. Hoje fazemos dramatizações, e nas salas nos esperam diversos materiais e uma consigna. As narrativas sobre sexualidade começam a circular. As cenas se desenrolam e histórias pessoais sobre educação sexual passam a fazer parte do texto ficcional. Algumas pessoas atuam e outras assistem. Cada pessoa se vê em si mesma e nos outros. Vislumbramos infâncias e suas curiosidades, adultos e lugares institucionais que não sabem agir e responder a muitas situações. Damos lugar à reflexão e à articulação teórica sobre o que vivenciamos, cada pessoa traz situações de trabalho e pessoais que pensamos juntos/as. Aparecem perguntas, às quais tentamos dar respostas que gerem mais perguntas. Nessas reflexões fechamos até a próxima oficina.

Pensando sobre sexualidade na Primeira Infância
Somos um grupo formado por três colegas de diversas formações profissionais e educacionais que se uniram pelo interesse na interseção entre a educação infantil e a educação sexual integral. Gostamos de pensar questões e, acima de tudo, construir pedagogia através de perguntas. Portanto, temos interesse em abrir este artigo com algumas perguntas:

Existe sexualidade na primeira infância? É uma dimensão vital educar? Quem educa sobre sexualidade? Que relação existe entre a sexualidade humana e uma sala de educação infantil com crianças de 12 meses? Como seria uma proposta de educação sexual integral para quem acompanha crianças de 1 a 6 anos?

Há dois anos começamos a propor ciclos de oficinas de formação sobre sexualidade especificamente na Primeira Infância com a convicção de que esta etapa da vida é essencial. As sensibilidades são construídas desde a gestação e a infância merece e necessita de ambientes educacionais e familiares que as ensinem a pensar, sentir e fazer fora dos mandatos de uma sociedade sexista, misógina, lesbotranshomofóbica, racista, gordofóbica e capacitista.

Impossível não educar
Acompanhar o crescimento das crianças, independente da área, implica sempre educar sobre a sexualidade. É impossível não educar sobre sexualidade. Todes todos e todas, pessoas adultas, estamos de uma forma ou de outra contribuindo para moldar a sexualidade da infância.

Este é o primeiro pressuposto a partir do qual partimos ao fazer educação sexual integral (ESA). Uma das maiores complexidades da educação sexual é que, na maioria das vezes, nós pessoas adultas ensinamos sem sequer perceber que o estamos fazendo e, as crianças também não sabem que estão aprendendo. Porque a sexualidade se aprende a partir do que se diz, mas também do que não se diz, dos silêncios, dos tabus, das piadas das pessoas adultas, da forma como se movem, da forma como expressam (ou não expressam) as suas emoções, os seus desejos e preferências, o que cada gênero permite e não permite no seu dia a dia.

O desafio de registrar novamente nossas experiências
Nós que hoje somos pessoas adultas, outrora, há mais ou menos tempo, também éramos crianças. Esse é outro pressuposto fundador do nosso trabalho na ESI: a criança que fomos está viva em todos nós, com todas as experiências e ensinamentos que nos constituíram como seres sexuais.

Se você pensa na sua infância, que lembranças lhe vêm à mente em relação à sexualidade? Como você aprendeu sobre sexualidade? Que coisas te contaram? Quais não foram explicadas para você? Quem te explicou ? Quando foi? Como você se sentiu? Sobre o que você teve que ficar calado/a? O que você não sabia perguntar?

Nos nossos primeiros anos de vida aprendemos a pensar, a fazer e a sentir e inexoravelmente aprendemos sobre o que é “normal” e o que é “anormal” em relação ao gênero, à diversidade sexual, aos corpos, às sensibilidades e aos desejos em geral. Isto é, construímos um sistema de valores que inclui tanto liberdades e poderes como preconceitos, tabus e estigmas. Todas as nossas experiências pessoais em relação à sexualidade ao longo da nossa infância e posteriormente da adolescência e da idade adulta nos moldam e estão presentes em cada encontro com as crianças que acompanhamos. É por isso que, para construir novos conhecimentos, visões e sentimentos que potencializem o desenvolvimento de uma infância mais livre, precisamos começar por nós mesmos/as.

Uma formação dentro e a partir do corpo
É possível educar as crianças num mundo mais livre e para um mundo mais livre sem rever os mandatos que aprendemos e que ainda hoje nos habitam?

Ana Pampliega de Quiroga (1991) nos fala das matrizes de aprendizagem como aqueles “prismas cognitivos” que construímos e a partir dos quais conhecemos, organizamos, interpretamos e abordamos a realidade. Toda experiência de aprendizagem explícita “deixa-nos uma marca, inscreve-se em nós de certa forma, fortalecendo ou inaugurando uma modalidade de ser-no-mundo e de ser-o-mundo para nós. Para interpretar o que é real.” Estas modalidades de que ela nos fala constituem-se em nós como estruturas maioritariamente inconscientes, cujas origens estão registadas nos nossos corpos.

Conseqüentemente, para poder acessar parte desses rastros é necessário mais do que palavras ou uma aula expositiva. É o corpo colocado em ação que nos leva a nos conectar com sensações que até agora nem havíamos experimentado novamente.

Numa dramatização, numa brincadeira, num desenho, na construção de uma colagem, numa meditação, revelam-se cenas quase espontâneas e muito poderosas relativamente aos discursos que guardamos sobre a sexualidade infantil.

“O corpo lembra, os ossos lembram, as articulações lembram e até o dedinho lembra. A memória está alojada nas imagens e sensações das células. Como uma esponja embebida em água, onde quer que a carne seja comprimida, espremida ou mesmo levemente escovada, a memória pode surgir como uma fonte.” (Pinkola Estés, citado em SEXUR, 2008, pp 18)

Assim, nossas experiências vivem em nós silenciosamente, esperando aquele primeiro movimento que nos convida a contatá-las e despertá-las. Tiremos o pó, para trazê-las para o primeiro plano, reinscrevendo-as em nossos corpos, retomando o contacto com os prazeres, necessidades e complexidades da nossa infância, para construirmos novas formas de acompanhar infâncias, mais felizes, mais saudáveis, mais livres.

Fechamentos que abrem
Depois de sete horas de vida compartilhada, o dia do encontro mensal chega ao fim. As propostas do dia são sempre desafiadoras e mobilizadoras. Docentes e participantes passam por um vaivém de pudores, gozos, alegrias, desconfortos, angústias e ilusões. Colocar seu corpo em risco é libertador, alegre, mas muitas vezes também desconfortável. Despedimo-nos com sorrisos cansados ​​mas satisfeitos. Aliviadas até. Nós que coordenamos agradecemos a disponibilidade e o desejo.Agradecemos a sua presença e dedicação para mergulhar nas incertezas que lhe propomos. Os/as participantes agradecem-nos a reflexão e o planejamento tão preciso e ao mesmo tempo tão flexível, o amor e o cuidado no acompanhamento, o conhecimento e o tempo partilhado de reflexão. Repensar-se não é fácil, mas pode ser muito prazeroso. Que afortunadas são as oportunidades que se abrem quando trabalharmos com a infância pois continuamos a crescer também.

Síntese
Quando se trata de sexualidade, é impossível gerar verdadeiros movimentos nas nossas estruturas profissionais sem mover as pessoais, porque (embora às vezes seja quase esquecido) nós que fazemos educação somos pessoas adultas e éramos, há mais ou menos tempo, mas sem exceções, crianças também.
A maioria de nós não teve uma educação sexual abrangente na infância como modelos nos quais nos basear. Não há universidades para se formar como mãe e pai. Os planos de estudo educativo dedicam nada mais do que um pequeno espaço a esta dimensão humana que está na base das nossas subjetividades. Então, por onde começamos?

Referências Bibliográficas:
Ascué, M, Rodés, V, Biere, A, Campero, R, Chans, C:
(2008). Um modelo para uma abordagem abrangente da sexualidade
Montevidéu: Instituto de formação sexológica SEXUR.

Quiroga Ana P. de (1991) Conceito de matriz de
aprendizado. Em Matrizes de Aprendizagem. Constituição
do sujeito no processo de conhecimento. Buenos Aires:
Edições Cinco

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