Para início de conversa…
O debate de gênero e sexualidade na educação, nos anos recentes, tem estado na mira dos ataques de grupos religiosos conservadores e fundamentalistas, cujas investidas chegam a se ramificar nas políticas públicas brasileiras, promovendo censuras em planos de educação, nas suas esferas municipais, estaduais e federal. Com esses movimentos políticos, de cunho moralista e conservador, e não menos alinhados ao projeto neoliberal de sociedade em visível ascensão no país, “gênero”, “sexualidade” e “raça” passam a ser temas/discursos profanos e “mal-ditos”, em função de suas potências para descortinarem violências que são produzidas e reiteradas, secularmente, pelas desigualdades estruturais que marcam a distribuição de poder no Brasil e impõem grande parcela da população a viver sob precariedades aviltantes.
Seguir na contracorrente dessas políticas de censura e produção de violências é assumir a educação como um dos espaços importantes de luta e resistência, porque é no processo educativo que são ensinadas, desde a educação dos bebês, programações de gênero, raça e sexualidade como ideais absolutos de ser e viver que operam como fortes dispositivos de violação de direitos e das diferenças, em suas mais diversas aparições. Essas programações da vida atuam como demarcações rígidas que dividem mundos, ideias, afetos, experiências, territórios, histórias e culturas. Para se sustentarem, requerem hierarquias e estabelecem diferenças entre as pessoas pautadas em desigualdades que, como forma de se manterem, recorrem a violências.
“Ir contra essas políticas de censura e produção de violência é assumir a educação como um dos importantes espaços de luta e resistência”
A imagem modelar da “criança ideal-típica”, por exemplo, signo de uma infância abstrata e apartadas das condições sociais e históricas, atravessadas pelo gênero, raça, sexualidade e classe social, é o ideário em torno do qual gravitam práticas educativas, programas pedagógicos, literatura infantil e toda uma série de artefatos culturais voltados para as crianças, desde muito pequenas (BURMAN, 2008). Na imagem especular desse ideal de infância, meninas e meninos estão em mundos separados, posto que, para cada um/a, já foi escrito um script da vida muito bem roteirizado pelas expectativas de masculinidade e feminilidade que são seladas como gêneros inteligíveis e têm a chancela do reconhecimento social.
“Meninas e meninos estão em mundos separados, pois, para cada um, já foi escrito um roteiro de vida, muito bem pautado pelas expectativas de masculinidade e feminilidade”
Para entrarmos nesse debate movediço, porém mais do que necessário no cenário do Brasil atual, compartilhamos cenas das relações entre crianças e suas professoras, mediadas por inquietações atravessadas por gênero, sexualidade e raça e vividas no contexto de uma pesquisa, na brinquedoteca de uma instituição de Educação Infantil, da rede pública de ensino do município de Rondonópolis, Mato Grosso2 (CAMARGO; SALGADO, 2019). As análises que lançamos para essas cenas se inspiram nos estudos da interseccionalidade, que é uma perspectiva advinda do feminismo negro como crítica e contestação ao feminismo que, em nome da universalidade da categoria “mulher”, acaba por invisibilizar as diferenças que marcam as vidas de mulheres que não se encaixam no enquadre de uma feminilidade branca, cisgênera e heteronormativa. Nesse sentido, a interseccionalidade é a abertura para as análises e as possibilidades de visibilizar as diferenças, assumidas como marcadores sociais que não se somam ou se sobrepõem, simplesmente, mas sim articulam-se nos modos como atravessam subjetividades, posições sociais, experiências e sentidos em condições estruturais que configuram violências e resistências (DÍAZ-BENÍTEZ; MATTOS, 2019).
Participaram da pesquisa 22 crianças, de cinco anos, do 2º agrupamento do II Ciclo da Educação Infantil, 19 professoras, duas coordenadoras pedagógicas e a diretora da instituição. A pesquisa intervenção é assumida como a perspectiva metodológica da pesquisa com as crianças e as professoras, que ganha vida, sobretudo, com as rodas de conversa, nas quais acontecem os debates sobre os assuntos vividos e compartilhados no cotidiano da instituição educativa. Desestabilizar as bases hierárquicas e desiguais das relações entre adultos e crianças, tal como Lucia Rabello de Castro (2008) propõe, é, sem dúvida, um dos grandes desafios dessa perspectiva metodológica que inspira uma prática e uma postura de pesquisa que se esforçam por seguir na contramão das relações adultocêntricas.
Infâncias separadas, mundos divididos: primeiro as meninas, depois os meninos
Na vida e no jogo, no brincar e na arte, na família e na escola, um dos primeiros ensinamentos às crianças é fazê-las perceber um mundo dividido e demarcado, onde as pessoas são definidas e, assim, programadas para viver em conformidade com um regime de vida. Para a infância, por ser nomeada como o tempo da vida que se projeta para o futuro que abriga uma suposta identidade adulta consagrada pela racionalidade, autossuficiência e produtividade, os investimentos sociais são notórios para que o roteiro da vida inspirado em estatutos de inteligibilidade se cumpra. Como práticas ou discursos que adquirem materialidade na repetição e na reiteração, as normas, fomentadas por esses estatutos de inteligibilidade, vão produzindo os efeitos de uma verdade ontológica que passa a sustentar o reconhecimento social de subjetividades, corpos e vidas (BUTLER, 2015; 2016). Não é em vão que esse campo do reconhecimento social, como argumenta Judith Butler (2015; 2018), delimitado pelo que é ou não definido como inteligível, produz zonas habitáveis por corpos e vidas que importam e corpos e vidas cujas existências estão na mira das violências e do desamparo por escaparem dos enquadres dos escrutínios da inteligibilidade cultural.
E como esses discursos e práticas, que atuam em favor da repetição das normativas que dividem corpos e experiências, se entranham nas instituições de educação infantil? Nesses espaços educativos, as diferenças estão por toda parte, ainda que se queira sufocá-las: cores, corpos, olhares, vozes, movimentos, ideias, sentidos, gêneros, classes sociais, pertencimentos étnico-raciais, religiões, configurações familiares. As possibilidades relacionais são múltiplas e, a partir delas, são também diversas as experiências tecidas pelas crianças. No entanto, como já dito, são intensos os dispositivos que operam para capturar essa potência do diverso para classificar, ordenar, segmentar e dividir o que é vida, movimento e fluxo das infâncias, o que transborda as fronteiras. “A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto”, diz-nos Paul Beatriz Preciado (2013, p. 98), e é, assim, que passa a estar na mira da “polícia de gênero” que ronda os corpos infantis desde o berço, à espreita da nomeação pelas normas que, desde o nascimento, ou até mesmo antes dele, declara os atributos distintos que meninas e meninos devem possuir para existirem conforme as programações de gênero. A escola é um espaço social na vida das crianças, em que a polícia de gênero não cessa de rondar os seus corpos, por meio de sua rotina, da organização dos espaços e dos tempos, das brincadeiras, dos brinquedos, dos livros, das roupas, dos artefatos em geral, dos discursos dos adultos que, cotidianamente, vão tecendo mundos de fronteiras tão intransponíveis.
Por uma educação não “rachista”
Nas relações vividas na brinquedoteca da escola, as crianças reclamam seus direitos de brincar com os materiais oferecidos pela instituição, nem sempre à disposição de todas e todos, em sintonia com os seus desejos. Não são poucas as crianças que, com senso de rebeldia, se inquietam e contestam as hierarquias e as divisões que, de forma compulsória, as encerram dentro de mundos separados em “coisas de meninas” e “coisas de meninos”. Até mesmo a circulação das crianças pelo espaço é vigiada e controlada, sem que possam transitar por todos os cantos com liberdade e desenvoltura. Na pesquisa, cenas, como meninas que deixam suas bonecas para brincar com os meninos que montam pistas de corrida e meninos que se entusiasmam com as brincadeiras de cozinhar e limpar a casa, promovem os ruídos necessários para produzir as diferenças que quebram a repetição do “sempre igual”, abrindo possibilidades para outras experiências que subvertem as normas e as programações de gênero. Dessa maneira, caminhar na esteira de uma educação feminista, inspirada na perspectiva interseccional, é estar na margem como forma de produzir resistências. Como afirma bell hooks (1989), a margem não é apenas o espaço periférico, da repressão, mas é também o da potência da resistência, de modo a permitir o desmonte das normas, nos nós em que desigualdades e violências se amarram.
“poder de resistência, permitir o desmantelamento das normas, nos nós onde ligar as desigualdades e a violência”
Durante uma conversa com um grupo de crianças, que relatam sobre o que costumam e gostam de brincar na brinquedoteca, a pesquisadora pergunta a elas sobre os dinossauros, uma vez que algumas professoras, durante as entrevistas, disseram que nesse cantinho geralmente quem brinca são os meninos.2
Sandra: E vocês gostam de brincar com os dinossauros?
Minnie3: Não! (fala fechando os olhos e negando também com a cabeça).
Sandra: E por que você não gosta de brincar com os dinossauros, Minnie?
Minnie: Ah, não, né? Eu não sou menino.
Sandra: Mas só os meninos que brincam com dinossauros?
Nenhuma menina brinca com dinossauros?
Cinderela (falando e gesticulando com as mãos e cabeça, voz impostada): Isso daí não tem nada a ver! Isso daí não pode, não! Cada um brinca com o que quiser! Isso aí é rachismo [sic]! Todo mundo pode brincar com brinquedo de menino, e menino com brinquedo de menina […].
Sandra: Pode?
Pingo e Cinderela sinalizam que sim com a cabeça e com o corpo todo. Então, pergunto para Minnie: Todas as crianças podem brincar com os dinossauros?
Minnie: Pode, né? Mas eu não gosto (Caderno de Campo, 18/04/2018, grifo nosso).
As palavras ditas pelas crianças nem sempre ressoam para os adultos com sentidos que confluem. Em busca de uma inteligibilidade ou de uma interpretação adultocêntrica das palavras das crianças, em geral, recorre-se ao esvaziamento de sentido como forma de referendar um suposto não-saber infantil, definido como a falta de um significado que escapa à criança por não se assemelhar ou se aproximar de um conceito que o adulto detém. A palavra “rachismo” reúne sentidos e valências que, para além de um conceito dicionarizado, têm importância pela força afetiva da enunciação ao marcar a denúncia e a resistência diante da demarcação de mundos separados para as pessoas viverem. O “rachismo” acontece nas práticas sociais, nos espaços, nos pensamentos, nas relações, nas políticas que racham o mundo para discriminar vidas: as que importam e são protegidas e as que estão na mira das injúrias e violências. O “rachismo” vem, portanto, de uma consciência e manifesto infantis contra esse mundo rachado, cindido e binário. Cinderela parece reivindicar uma educação de corpos de crianças respeitados na sua dignidade e inteireza, uma educação que esteja aberta à livre expressão desses corpos e de seus sentidos por meio das linguagens lúdicas, sem que a nomeação “menina” ou “menino” venha antes de qualquer ato ou experiência.
Algumas considerações finais provisórias para continuar a conversa…
Em tempos de censura e violências consentidas que tomam conta da vida social, a educação de crianças precisa trabalhar no sentido de reativar o que das relações e experiências compartilhadas são antídotos para o confisco das existências e os seus aprisionamentos dentro de sistemas racionalistas de pensamento e regimes de verdade produtores de desigualdades e violências. Esses antídotos precisam ser ensinados às crianças como forma de subverter modos de pensar, agir e viver que abominam as diferenças e “racham” o mundo.
As crianças que, desde sua tenra idade, se manifestam contra o “rachismo”, tal como nos ensina o poeta Manoel de Barros (2011), “carregam água na peneira”. Elas querem ver o mundo de outras janelas, e não apenas por aquelas abertas pelos adultos, porque reivindicam o direito de viver suas infâncias, para além das polícias de gênero e de raça que rondam os espaços que ocupam.
Sandra Celso de Camargo
Professora de Educação Infantil. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFMT/Rondonópolis. E-mail: sandradcamargo@gmail.com.
Raquel Gonçalves Salgado
Doutora em Psicologia pela PUC-Rio. Professora Associada Universidade Federal de Rondonópolis.
E-mail: ramidan@terra.com.br
Notas
1. Palavra criada por uma menina de cinco anos da turma da pré-escola em que a pesquisa foi realizada. A palavra “rachismo”, no contexto do diálogo entre a menina, a pesquisadora e as demais crianças da turma, é a enunciação da denúncia das desigualdades e divisões binárias de gênero no cotidiano da Educação Infantil, primeira etapa da Educação básica.
2. Essas cenas fazem parte da pesquisa de dissertação mestrado “Cada um brinca com o que quiser! Isso aí é rachismo!”: infância e relações de gênero na brinquedoteca de uma instituição de Educação Infantil”, de Sandra Celso de Camargo, defendida pelo Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEdu), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), de Rondonópolis, em 2019.
3.“Polícia de gênero” Em sentido figurado, a vigilância exercida para imobilizar corpos de acordo com os critérios sociais de cada gênero.
4. As crianças e as professoras, participantes da pesquisa, escolheram os pseudônimos pelos quais gostariam de ser identificadas nos textos de divulgação da pesquisa, como forma de manter o anonimato de suas identidades, conforme os procedimentos éticos adotados.
Referências
BARROS, Manoel de. Poesía completa. São Paulo: Leya, 2011.
BURMAN, Erica. Desarrollos. Niño, imagen y nación. Londres y Nueva York: Routledge, 2008.
BUTLER, Judith. Cuerpos de alianza y política callejera: notas para una teoría performativa del ensamblaje. Río de Janeiro: civilización brasileña, 2018.
BUTLER, Judith. Materias que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. 2. ed. Buenos Aires: Paidós, 2015.
BUTLER, Judith. Problemas de género: feminismo y subversión de la identidad. 10. ed. Río de Janeiro: Civilización brasileña, 2016.
CAMARGO, SSandra Celso de; SALGADO, Raquel Gonçalves. “¡Cada uno juega con lo que quiere! ¡Esto es racismo! ”: Infancia, géneros y sexualidades en debate en Educación Infantil. En: SILVA, Adriana Alves; FARIA, Ana Goulart de; FINCO, Daniela. (orgs.). El feminismo en estado de alerta en la educación de los niños pequeños: transformaciones emancipadoras para las pedagogías descolonizadoras. São Carlos: Pedro y João Editores, 2019. p. 25-42.
CASTRO, Lucia Rabello de. Conocer, transformar (aprender) y aprender: investigar con niños y jóvenes. En: CASTRO, Lucia Rabelo de; BESSET, Vera Lopes (Organizaciones). Intervención investigadora en infancia y juventud. Río de Janeiro: Trarepa / FAPERJ, 2008. p. 21-42.
DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira; MATTOS, Amana. Interseccionalidad: zonas de problematización y cuestiones metodológicas. En: SIQUEIRA, Isabel Rocha de et al. (orgs.). Metodología y relaciones internacionales: debates contemporáneos. vol. II. Río de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2019. p. 67-94.
hooks, bell. Respondiendo: pensar en feminista, hablar de negro. Boston: South End Press, 1989.
PRECIADO, Beatriz. ¿Quién defiende al niño queer? Balsa crítica, literatura, artes, Viçosa, n. 1, pág. 96-99, enero / junio. 2013.