Carlos Skliar
A infância, a nossa e a do mundo, a da humanidade em geral e a do sujeito em sua singularidade, a infância como a idade da franqueza, ingenuidade, imaturidade e deslumbramento, não é mais, não existe, se foi, dificilmente volte, talvez nunca tenha existido.
Que a imagem romântica da infância tenha desaparecido não significa dizer que não haja algo semelhante a uma infância entre nós, em nós: restos, resíduos, fragmentos que ainda podem ser vislumbrados em algumas crianças, adolescentes, jovens, adultos ou idosos: bricadeiras sem finaliadad e, gestualidade transparente, rebeldias linguísticas, ações sem nenhuma utilidade produtiva, passeios sem consumo, olhares de transparência, leituras porque sim.
A infância não é ser criança: ambas ideias ou imagens ou discursos foram separados, eles perderam seus meios de subsistência na aparência inabalável de sua origem mítica; quando ajustamos as crianças à infância, algo, muito, se perde, se evapora, mas quando subtraímos das crianças a infância, também algo se perde, algo desaparece. E em ambos os casos permanece um certo gesto de desgosto, de desconforto, de dor e de indiferença.
“Quando tiramos as crianças da infância, algo se perde, algo desaparece”
A criança, como idade inicial, tornou-se a expressão de uma lagarta humana que, como um cruel paradoxo, só pode ser uma borboleta durante o pouco tempo que lhe resta de infância. Mas, ao mesmo tempo, é o humano já desenvolvido – isto é, já feito, já adaptado – que se arrasta como uma lagarta, aceitando mais ou menos docilmente as regras mecânicas e mortuárias das línguas infectadas pela razão, moral e jurisprudência.
As crianças não falam sobre a infância, nem mesmo em segredo, porque não fazem parte de uma seita ou associação, e porque não há segredos ou mistérios para revelar. A afirmação que sempre retorna e se faz cada vez mais sombria: “não ver a criança pelo que ela é, mas pelo que poderia vir a ser”; o jogo menos divertido e que paira como sombra sobre as crianças para que elas deixem de ser rapidamente: “o que você vai ser quando crescer?”
Quando dizemos algo de uma criança, a criança não está ma islá, é incompreensível e, portanto, só podemos mencionar o rastro de sua trilha em nós, uma espécie de cometa fugaz cuja luminosidade se perdeu no própriolimiar de palavras sucessivas: “Como você con hece uma criança? Para conhecê-la, tenho que esperar que ela se deteriore, e só então ela estará ao meu alcance. Lá está ela, um ponto no infinito. Ninguém vai conhecer o seuhoje. Nemela mesma (…) Um dia domesticaremos como humana e poderemos desenhá-la, pois as sim fizemos conosco e com Deus (Lispector, 2005: 17) ”.
Esperar que a criança se deteriore, tornar-se adulta, torná-la ao nosso alcance, explicá-la, domá-la para desenhá-la, traçar seu contorno, compreender seu conteúdo? É por isso que há tanta loucura na busca de uma resposta para o que é uma criança, e o olhar é definido, então, no que ela poderia se tornar, em seu estado travestido e revulsivo como adulto.
“A criança se desprende de sua infância e logo passamos décadas desejando um reencontro tão improvável como impossivél”
Acontece que na busca por uma resposta efetiva ou eficaz sobre o que é uma criança, interrompemos sua infância e depois passamos boa parte da vida tentando recuperar o que foi perdido. Interrompemos a infância das crianças e depois nos preocupamos com sua abundância ou sua carência, sua inclinação para o consumo ou sua incapacidade de produtividade, sua formação e sua decomposição.
Interrompemos a sua solidão: a solidão em que a ficção é cozinhada, a solidão em que ela brinca com a linguagem. A ficção deve terminar para dar lugar ao peso do real, e a linguagem deve deixar de ser uma metáfora, deve deixar de ser maternal – no sentido da invenção -, tornar-se paterna – no sentido da lei.
O tempo da infância morre, pois seus hábitos começam a fazer parte da fila de dos sucessos ordenados, utilitários e lucrativos; passam das horas de ficção à perda da invenção, do tempo que parece desaparecer, ao tédio.
A dor da infância ocorre no momento em que interrompe a intensidade do instante e se impõe a tirania da sequência forçada: aí o tempo se torna muito longo, se estende ao tédio, a insignificância, é torcido para outra duração, o da cronologia simples e pura, a da produtividade sem qualquer benefício ético ou estético.
Tudo o que foi simultâneo, disjuntivo, caótico e apaixonante torna-se sucessão, princípio e propósito frio, e é nessa interrupção da solidão e da ficção que ela é devastada pela invenção, com uma intuição de liberdade ou livre-arbítrio, suposição do ilimitado, a crença na totalidade; e, portanto, também, é que não há mais um salto no vácuo, não há mais um ensaio, não há narratividade ou experiência.
O oposto da infância é o que poderíamos nomear, então, como permanecer sem gestos.Nós adultos sabemos confinar as crianças, como derrotá-las: interrompendo, também, sua linguagem, uma linguagem perceptiva que não é feita de conceitos rigorosos ou definitivos, uma linguagem semelhante à de alguns bons poetas e bons contadores de histórias.
A criança é separada de sua infância e depois passamos décadas desejando uma reunião tão improvável quanto impossível: isso significa que nossa animalidade já foi perdida em nome da civilização seca e bem comportada, nossa atenção está definitivamente focalizada em tentar sobreviver, a nossa solidão é insuportável ou impraticável, não sabemos o que fazer com o tempo livre – tempo livre do produto e do consumo – e nossa linguagem há muito tempo deixou de ser maternal – vital, frutífera, metafórica – para se tornar paterna – rigorosa, legal -.
A educação dos meninos e meninas deveria oferecer como atmósfera o tempo livre, o tempo liberado, a experiência do tempo não utilitário, e doar como conteúdo essencial a restituição da infância à criança. Educar como um gesto que permita as crianças amadurecer para a infância, mas também para a humanidade em geral, nestes tempos vítima de uma aceleração e um turbilhão brutal, fadiga extrema e
uma exigência por desempenho mortal.
Carlos Skliar (CONICET/FLACSO, Argentina).