Reflexões pedagógicas. Meus filhos, minhas regras? Olhares das famílias sobre as questões de gênero na Educação Infantil

Noeli Aparecida Fernandes
Daniela Finco

Nos últimos anos pudemos acompanhar a força de movimentos conservadores, que buscam criar um contexto de confusão e ameaças, sobre o direito das mães e pais de educarem suas/seus filhas/filhos. Estudos sinalizam como o gênero vem sendo usado para a disseminação de pânico moral, em relação à educação das crianças A transnacionalização dos movimentos antigênero, presentes tanto na América Latina quanto na Europa, revela a tentativa de imposição de uma agenda antigênero nas instituições de educação. Manifestações como as do movimento político reacionário “Escola Sem Partido”, com ideias difundidas com as palavras de ordem #ConMisHijosNoTeMetas1, serviram de suporte para a construção de um pânico moral e confusão em relação à construção da identidade de gênero e a sexualidade na infância (MARTÍNEZ BETERETTTE, 2021).

No Brasil, vivemos nos últimos anos um momento histórico de retrocessos, por meio de um cerceamento das políticas sociais. Estudos brasileiros sinalizam como o gênero vem sendo usado para a disseminação de pânico moral, em relação à educação das crianças e jovens, por aqueles que se expressam por partidos nacionalistas, sexistas, racistas, conservadores, neoliberais, aumentando os discursos públicos antigênero. O termo gênero passou a ser temido por muitas pessoas, especialmente com base em discursos conservadores de algumas alas religiosas, referendados por políticos representantes de setores da sociedade civil.

As políticas públicas anti “ideologia de gênero” nas instituições de educação, escoltadas pelo discurso de proteção à família e às crianças, promovem o entendimento de que gênero desvirtuaria e defende a sexualização das crianças, o estímulo à homossexualidade e a destruição da família (LEITE, 2019). O crescimento das polêmicas neste campo, volta atenção ao fato de que as crianças estão no centro das cruzadas de gênero. A escola passa a ser um dos principais alvos dessa ofensiva reacionária, colocada no centro do debate público, para deslegitimar a liberdade docente e desestabilizar seu caráter público e laico, como espaço da criticidade e da pluralidade, para o convívio cidadão e democrático (MISKOLCI, 2018; JUNQUEIRA, 2022).

 

Fonte: Acervo da pesquisa de Gibim (2017) Desenho da Gabrielly –Minha família “Aqui eu e aqui minha vó”

Considerando a necessidade de problematizar tal contexto, buscamos refletir sobre como as questões de gênero têm sido abordadas na relação entre as famílias e a instituição de Educação Infantil2, para compreender o contexto de uma educação compartilhada, que implica no encontro de famílias e profissionais que possuem perspectivas diferentes sobre a educação e as necessidades das crianças, demandando uma constante negociação, refletindo sobre as situações que envolvem as crianças e os conflitos de gênero presentes em seus cotidianos.

Compreendendo gênero como a organização social da diferença sexual, uma construção social que uma dada cultura faz em relação a homens e mulheres, tratando-se de uma forma primeira de significar as relações de poder (SCOTT, 1995), podemos refletir sobre como as desigualdades de gênero vão se instaurando em nossa sociedade e como as relações entre homens e mulheres vão se hierarquizando, desde antes mesmo do/a bebê nascer diante das expectativas que giram em torno de ser menina ou ser menino. Deste modo, o conceito de gênero nos auxilia a problematizar e a compreender as complexas relações entre natureza e cultura, bem como nos ajuda a desvendar as formas como somos educadas/os, e o quanto a instituição educacional reproduz ou não a cultura sexista e heteronormativa da sociedade patriarcal.

Os desafios e as responsabilidades de uma educação compartilhada
Trazemos a reflexão sobre as questões de gênero presentes na relação entre famílias e instituições de Educação Infantil, problematizando a tensão presente na educação das crianças pequenas, considerando os desafios e as responsabilidades da educação compartilhada. Para tal, foram realizadas entrevistas com representantes de cinco famílias, caracterizadas como famílias nucleares, compostas por pai, mãe e um ou dois filhos/as, vivendo na mesma unidade doméstica. Sendo quatro mães: Regina, Clarice, Lourdes e Paula e um pai: Fabiano3 que possuem uma participação ativa na instituição de Educação Infantil, fazendo parte do Conselho de Escola.

Fonte: Acervo da pesquisa de Gibim (2017)

Desenho de Khallel – “Minha tartaruga, o cachorro do meu pai, minha mãe, meu pai, minha irmã, meu tio Marcos, meu tio Carlos, minha tia Paula, minha prima Lorena, meu primo Felipe, a Giovana, minha tia Dete, minha tia Rê, hã, minha outra prima Bia, minha outra prima Sophia, meu outro tio… Carlos, e a minha tia, tia, esqueci o nome”.

O estudo teve como balizador para a introdução do debate de gênero junto às famílias, o documento Indicadores de Qualidade da Educação Infantil Paulistana (SÃO PAULO, 2016), um instrumento de autoavaliação institucional participativa, que visa fortalecer a parceria e o diálogo entre as famílias e a instituição educacional, dando voz aos diferentes segmentos que compõem a instituição de Educação Infantil, que coletivamente, passam a ser responsáveis pelas decisões e encaminhamentos apresentados. Compartilhamos os resultados dessas entrevistas que nos ajudam a refletir sobre as relações entre famílias e a instituição de Educação Infantil, trazendo seus olhares sobre questões que envolvem gênero na vida de suas/seus filhas/filhos, buscando conhecer e compreender as ideias, os desejos e valores acerca da educação de gênero.

As famílias entrevistadas demonstram estar abertas aos desejos e curiosidades de suas/seus filhas/filhos, e revelam esforços para não reproduzir os estereótipos e escapar das normatividades de gênero na educação familiar. Mostram que se preocupam com as expectativas de gênero sobre suas/seus filhas/filhos. O fato de terem irmãos e irmãs na mesma família amplia as possibilidades de reflexão sobre as pressões sociais de gênero, seja porque as famílias comparam a educação entre as crianças, seja porque as próprias crianças questionam as distinções de gênero em seus processos de socialização. Percebem que as meninas têm menos restrições que os meninos, afirmando que “é como se elas pudessem arriscar mais o universo considerado masculino” (Mãe Regina), compartilhando suas preocupações de como é trabalhoso ter sempre que dar justificativas, quando as crianças fazem suas próprias escolhas e escapam dos binarismos de gênero. O medo dos preconceitos de gênero pode justificar, segundo elas, a proteção das crianças, que leva à privação de suas diferentes experiências na infância. As pressões para que as famílias com suas crianças se adequem às expectativas de gênero são grandes e fortes, elas representam a manutenção da hierarquização e da ordem patriarcal historicamente construída em nossa sociedade (VIANNA e FINCO, 2009). Porém, as famílias mostram suas percepções em relação aos gostos e preferências de suas/seus filhas/filhos e acham importante a diversidade de brinquedos oferecida para as crianças, reconhecendo que os adultos, geralmente, buscam enquadrar as crianças:

“Os dois tiveram bonecas de dormir e levavam para brincar na escola. Sempre tiveram carrinho também. A gente sempre trouxe preocupação de tratar de maneira igual tanto nosso filho quanto nossa filha.” (Mãe Lourdes).

“Me incomodava muito o fato da creche separar os brinquedos, as bonecas dos carrinhos, na hora de dar às crianças. ‘Bonecas’ para as meninas e ‘Carrinhos’ para os meninos. Talvez, pudessem pensar em outro jeito de ofertar, com os brinquedos misturados.” (Mãe Clarice).

“Minha filha reclamava que na hora de guardar os brinquedos, os meninos não ajudavam, não cooperavam. A gente levou esse episódio para a creche para aprofundar a questão com a creche, com as outras famílias.” (Pai Fabiano).

O uso dos banheiros unissex da instituição foi outro elemento trazido pelas famílias, ao expressarem suas concepções e valores de gênero. Afirmam que consideram uma boa ideia os banheiros mistos. As colocações das famílias sobre o uso de banheiros unissex na instituição de Educação Infantil demonstram a valorização de práticas educativas promotoras de respeito às crianças. Também destacam que compreendem isso como uma mudança processual, que envolve a necessidade de diálogo e respeito, apontando que a desconstrução dos preconceitos deve ser coletiva, num trabalho em conjunto com a escola:
 “Super concordo com o banheiro misto para as crianças na escola, porque assim, a escola está pensando na criança.” (Mãe Paula).
“Na creche era assim também, todas as crianças juntas. É importante para eles desenvolverem um respeito mútuo, em relação à percepção de suas necessidades básicas.” (Pai Fabiano).
“Eu nunca tinha ido a um lugar com banheiro unissex. Quando vi o banheiro da escola unissex, pensei ‘olha, que ousadas’! Achei elas maravilhosas, porque olham à frente do tempo!” (Mãe Clarice).

“Na reunião de acolhimento das famílias na escola, uma avó que disse: ‘A minha neta vai ficar num banheiro junto com os meninos?’ A escola não julgou essa avó, mas tentou desconstruir sua opinião, mostrando um olhar diferenciado. A escola tem um peso muito grande quanto a coletividade, quanto o papel de trazer essa cultura, não só para as crianças, mas para toda a comunidade.” (Mãe Paula).

Os dados revelam percepções das famílias sobre as expectativas de gênero sofridas pelas crianças nos processos educativos. Ao conhecer suas preocupações e posicionamentos, podemos rever o bordão “meus filhos, minhas regras”, desconstruindo a visão de que essas famílias não estão abertas para o diálogo com a instituição de Educação Infantil, mas que possuem interesses em dialogar e participar da construção de um projeto educativo de qualidade para as crianças, partindo da perspectiva de que as famílias são interlocutoras fundamentais no processo de construção de um projeto de educação da primeira infância, colocando em evidência a importância de uma troca contínua e recíproca entre os diferentes contextos em que as crianças crescem (FORTUNATI, 2009).

A pesquisa revelou a importância de ampliar as escutas e as trocas de ponto de vista no convívio entre famílias na instituição de Educação Infantil, compartilhando experiências educativas que reflitam sobre as questões de gênero. Este diálogo entre os/as adultos/as é essencial para o bem-estar da criança, para que possam trocar suas perspectivas sobre o que entendem ser melhor para elas, a fim de lhes garantir proteção, não esquecendo os interesses das crianças e seus direitos (GAITÁN MUÑOZ, 2006, ALANEN, 2010).
Os resultados ajudaram a rever a ideia de que as famílias são um ponto dificultador para o desenvolvimento de um trabalho educativo de gênero na Educação Infantil. Para além da culpabilização, que recai sobre as famílias, a instituição de Educação Infantil pode estar aberta à escuta, construindo uma relação de confiança. As famílias indicam que acreditam que o diálogo é fundamental para a abordagem das questões de gênero, que há muitos olhares diferentes para essa abordagem, e se colocam abertas para refletir e participar da construção do projeto educativo das crianças. (FERNANDES e FINCO, 2022). Compreendem a importância da construção de um espaço de compreensão mútua entre as/os envolvidas/os no processo educacional, tornando-se a escola um local educativo, para promover relações em experiências humanas significativas.

As instituições de Educação Infantil, assim, são importantes espaços de socialização das crianças, podendo promover uma educação para a diversidade de gênero e para a cidadania. A discussão das relações de gênero na Educação Infantil pode representar a possibilidade de uma educação mais igualitária, que respeite a criança na construção de sua identidade, considerando que a forma como meninos e meninas estão sendo educados/as pode contribuir para se tornarem mais completos e/ou para limitar suas iniciativas e suas aspirações (FINCO, 2020).

Fonte: Acervo da pesquisa de Gibim (2017)

Desenho de Emanuelle: “Minha tia, meu tio, minha prima, meu primo, é, minha madrinha,
minha mãe. Não, eu, meu pai, minha madrinha e meu padrinho.”

Destacamos por fim, a importância do oferecimento de um serviço para a infância, que considere o contexto em que se desenvolve, que seja capaz de acolher as imagens e as ideias que as famílias elaboram em relação a suas/seus filhas/filhos, bem como as ideias que as próprias crianças elaboram sobre suas famílias, sobre si e sobre o mundo. O diálogo entre a instituição de Educação Infantil e as famílias, com seus olhares e culturas que se entrecruzam, revelam um emaranhado de relações, envolvendo diferentes concepções e crenças que permeiam as práticas educativas cotidianas, e dão ênfase naquilo que as une, a centralidade educativa nas crianças e o respeito por suas singularidades e pluralidades.

Notas
1. El hashtag #ConMisHijosNoTeMetas se hizo evidente por el papel relevante que jugaron las redes sociales en una acción conjunta con el programa “¡Con Mis Hijos No Te Metas!” que aparece en Perú, así como en Brasil, Colombia, y Uruguay difundo durante sus manifestaciones la consigna que sirvió de apoyo a la construcción de la identidad de género, en oposición a los enemigos defensores de la “ideología de género”, que según este movimiento, buscan garantizar que no haya diferencias entre hombres y mujeres y tratar de hacerlo a través de la educación, eliminando el derecho de los padres a educar a sus hijos. Hashtag muy similar al eslogan “‘mis hijos, mis reglas” acuñado por la Escola Sem Partido, en Brasil.
2. Este texto se basa en los resultados de una investigación de maestría (FERNANDES, 2021), desarrollada en una Escuela Pública de Educación Infantil de la Red Municipal de Educación de la ciudad de São Paulo, Brasil.

Referências
Alanen, Leena. (2010). Teoria do Bem-Estar das crianças. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, v. 40, n. 141, p. 751-775, Set.-Dez.

Fernandes, Noeli Aparecida. (2021) Um estudo sobre as relações de gênero na Educação Infantil: o que as famílias têm a ver com isso? Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de São Paulo.

Fernandes, Noeli. A.; Finco, Daniela. (2022). Diálogos Necessários de Gênero: olhares e culturas que se entrecruzam na Educação Infantil. Interacções, Portugal 18(61), 233–257.

Finco, Daniela. (2020). O que nos ensinam meninas e meninos quando escapam das fronteiras de gênero? In: VIANNA, Cláudia P.; CARVALHO, Marília. (orgs.). Gênero e Educação: 20 anos construindo conhecimento. Belo Horizonte: Autêntica, p. 147-162.

Fortunati, Aldo. (2009). A Educação Infantil como Projeto da Comunidade: crianças, educadores e pais nos novos serviços para a infância e família. A experiência de San Miniato. Porto Alegre: Artmed.

Gaitán Muñoz, Lourdes. (2006). Sociología de la infancia. Madrid: Síntesis.

Junqueira, Rogério Diniz. (2022). A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letras Livres.

Leite, Vanessa. (2019). “Em defesa das crianças e da família”: Refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos “conservadores” em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Revista Latinoamericana de Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 32 – ago., pp.119-142.

Martínez Beterette, Wilma María. (2021). Con mis hijos no te metas: “Disputas y tensiones en torno a la implementación de la educación sexual integral”.  Dissertation Publishing,  (Master), Georgetown University.
Miskolci, Richard. (2018). Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu, (53).

Scott, Joan Wallach. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.71-99, jul./dez.

Vianna, Cláudia Pereira; Finco, Daniela. (2009). Meninas e meninos na Educação Infantil: uma questão de gênero e poder. Cadernos Pagu, Campinas, n. 33, p. 265-283, jul-dez.


Noeli Aparecida Fernandes

Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, Brasil. Participante do Grupo de Pesquisa sobre Gênero, Educação Infantil, Cultura e Sociedade – Unifesp- Brasil. Supervisora ​​Escolar Aposentada da Rede Municipal de Ensino de São Paulo. e-mail: fernandesnoeli17@gmail.com.br

Daniela Finco
Professor associado do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Gênero, Educação Infantil, Cultura e Sociedade – Unifesp- Brasil. e-mail: dfinco@unifesp.br

Notas
1. A hashtag #ConMisHijosNoTeMetas ficou evidente pelo papel relevante que as redes sociais tiveram numa ação conjunta com o programa “Con Mis Hijos No Te Metas!” que aparece no Peru, assim como no Brasil, na Colômbia e no Uruguai, difundiu durante suas manifestações o slogan que serviu de apoio à construção da identidade de gênero, em oposição aos inimigos defensores da “ideologia de gênero”, que segundo este movimento , procuram garantir que não haja diferenças entre homens e mulheres e tentam fazê-lo através da educação, eliminando o direito dos pais de educarem os seus filhos. Hashtag muito parecida com o slogan “‘meus filhos, minhas regras’” cunhado pela Escola Sem Partido, no Brasil.
2. Este texto baseia-se nos resultados de uma pesquisa de mestrado (FERNANDES, 2021), desenvolvida em uma Escola Pública de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino da cidade de São Paulo, Brasil.
3. Os nomes utilizados são fictícios

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